quarta-feira, 12 de outubro de 2011

RETRATO DE JORGE TUFIC




RETRATO DE JORGE TUFIC


Rogel Samuel




  1. Lentilha, azeite doce, o acebolado

chia na frigideira de alumínio;

a casa está repleta de convites

para a janta frugal e acolhedora.

Nos arredores brinca o vento: a cerca

divisória, talvez, nada separa.

Vizinhando quintais vozes fraternas

cantam, mandam recados de ternura.

Assim te vejo, mãe, rosto suado

na lida da cozinha ou pondo a mesa.

Terrinas de coalhada, o pão redondo

a recender de ti, mais que  do trigo.

Calendário sem datas, chão de outrora,

como tudo passou se tudo é agora?



Que dizer do quarto soneto?

A mulher amada, substituto da mãe. Ou da natureza. “Pela explosão de uma imagem, o passado longínquo ressoa em ecos e não se vê mais em que profundidade esses ecos vão repercutir e cessar”, disse Bachelar, em “A poética do espaço”.

Escreveu Dom Ramon Angel Yara, bispo de La Serena, Chile, no seu igualmente “Retrato de Mãe”: "Uma simples mulher existe que, pela imensidão de seu amor, tem um pouco de Deus; E pela constância de sua dedicação, tem muito de anjo; Que, sendo moça, pensa como uma anciã e, sendo velha, age com as forças todas da juventude; Quando ignorante, melhor que qualquer sábio desvenda os segredos da vida, e, quando sábia, assume a simplicidade das crianças;
Pobre, sabe enriquecer-se com a felicidade dos que ama, e, rica, empobrece-se para que seu coração não sangre ferido pelos ingratos; Forte, entretanto estremece ao choro de uma criancinha, e, fraca, entretanto se alteia com a bravura dos leões; Viva, não lhe sabemos dar valor porque á sua sombra todas as dores se apagam, e, morta, tudo o que somos e tudo o que temos daríamos para vê-la de novo, e dela receber um aperto de seus braços, uma palavra de seus lábios. Não exijam de mim que diga o nome dessa mulher, se não quiserem que ensope de lágrimas este álbum porque eu a vi passar no meu caminho. Quando crescerem seus filhos leiam para eles esta página: eles lhe cobrirão de beijos a fronte; e dirão que um pobre viandante, em troca de suntuosa hospedagem recebida, aqui deixou para todos o retrato de sua própria mãe...” (Tradução de Guilherme de Almeida).

Que dizer do quarto soneto? O soneto da permanência da mãe. Mãe não morre nunca. Somos nós mesmos. Ou “calendário sem datas”.



  1. Em tudo, minha mãe, te vejo e sinto.

Neste verniz antigo, neste cheiro

suavíssimo que vinha do teu corpo,

do pólen de tuas mãos, do hortelãzinho.

Em tudo, minha mãe, teu vulto amado

se desenha mais firme, e, lentamente,

vem dizer-me aos ouvidos qualquer coisa

desses anos que pesam sobre mim.

Em tudo, minha mãe, vejo este lenço

que à passagem da dor recolhe o traço

do sorriso que foste a vida inteira.

E, mesmo quando morta, entre açucenas,

ainda ressai de ti, poder divino,

a canção que adormece o teu menino.



O poeta vê a mãe, significa que ela está aí, presente, que ela é uma presença.

Essa é a permanência da mãe, mesmo morta, ainda canta, ainda existe, ainda alivia, ainda consola, ainda sorri.

A mãe é eterna!

Sim, mas morre: é o quinto soneto. A morte do eterno. A queda dos deuses... E num domingo!  É o soneto da morte, do fim. O Eterno, como bem viu Hannah Arendt, é a eternidade do instante. O imortal é a presença da lembrança. 



  1. Numa tarde opressiva de domingo,

o estrondo de tua queda: a irreversível

fratura que me dói quando te lembro

de olhos fixos em mim, quase a dizer-me

adeus, lágrimas ácidas rolando

sobre abismos drenados- tal o impacto

na dureza do chão, tal  a dureza

do impacto na ossatura envelhecida.

Ninguém para colher-te o desamparo

desse tombo sem grito; apenas gestos

e vozes pressentidas me indicavam

zombeteiro demônio. Quem mais, Senhor,

de tão covarde, cínico e vilão,

faz da morte uma simples diversão?

A volta do tempo materno, do seio materno, ou seja, do ninho, a infância iluminada época da Mãe, mãe protetora armadura fonte. Nossa juventude dela vinha, nossa fartura se originava nela. A poderosa Mãe, entretanto pobre, que se inquietava na escassez. Mãe bela, esbelta, musical. Mãe mítica! Poderosa fantasia posta em ouro. Brilhos e luas. Amada que quando voltava trazia o mundo inteiro em seus cabelos, em suas vestes, em suas mãos.

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