sexta-feira, 14 de outubro de 2011

RETRATO DE JORGE TUFIC



Por Rogel Samuel



  1. Nossa infância era toda iluminada

pelas fontes da tua juventude.

Armadura que tínhamos freqüente

para afastar as sombras e o perigo.

Eram fartos os dias com teus peixes

mergulhados no arroz: postas de ouro

não largavam seus brilhos nem suas luas.

Na escassez, entretanto, te inquietavas.

Ainda te vejo, o porte esbelto indo

por aqueles baldios transparentes

onde a luz, de tão verde, pincelando

os ermos, quanta música expandia!

Voltavas quase noite ao doce abrigo,

e o mundo inteiro, mãe, vinha contigo.





Aqui a mãe dá a vida, ela é fonte da juventude, da proteção, a fartura, a nutrição.

O texto é escrito com o forte intuito de buscar, de recuperar a imagem da mãe no passado do próprio texto, aquela linguagem, aquela criatura divina, dama antiga, fada e santa, busca infinita de volta à fala do útero materno, ao ninho antigo, àquele aconchego materno, onde tudo estava em paz, onde nela nos alimentávamos, nos encontrávamos com nossa originária semente, e para isso, para esse canto, o poeta pede a voz do pássaro, o pedal das nuvens, procurou, como Narciso, na água dos regatos, a imagem aquela que em nós dela nunca se esquece.

Mas nada. Somente nos versos há a sua fotografia.



  1. Fui pedir ao canário que me desse

um raspão do seu canto fragmentário;

fui às nuvens do céu pedir mais nuvem

para o leve pedal que emite a voz;

debrucei-me, também, sobre os regatos

em busca de tua face; a brisa, enfim,

tentara descrever-te mas não pôde.

Andei, assim, por montes e calvários.

Ajoelhei-me ante o Cristo, bebi vinho.

Nada pude captar, nenhum remorso

fora maior que o meu nessa procura.

Somente agora, mãe, na tecelagem

destes versos que fiz para louvar-te,

em tudo posso ver-te e posso amar-te.

Os versos são para louvá-la, recuperar a sua imagem, o seu amor.

O que a lembrança traz, porém, gera o pavor, o horror da recordação, o recordar daquela cena que não devia de ser nunca levantada, a agonia, a morte, a terrível e insuportável cena, daquela que foi fonte da vida, da alegria fonte, da proteção origem, abrigo, auxílio, amparo, e por quê?, como de repente aparece este “estavas, posta no esquife” - Não! Não quero vê-la! Não a posso ver, ainda que ela esteja ali liberta como num trono, entronizada no Eterno,  sonho rente à luz, Iluminada – a morte vem também como vieram galáxias, vales luminosos, auroras – mas por teres desaparecido mais sombrios os dias aqui deixados – como no soneto de Camões:



  1. Estavas, posta no esquife, igual a todas

as defuntas convulsas, lapidadas.

Tão branca e tão distante companheira

destes ventos na pausa da agonia.

Quisera ter morrido quando foste,

nave de ti somente, abrindo rotas

na invisória partida, nesse coro

latente em nossas almas. Parecias

dormir, então, liberta como um trono.

Ó lágrimas de Orfeu, tempo escoado,

corpo de insones ânforas, mãezinha,

que sei de ti nos guantes da saudade?

Que sabemos de ti quando te vais,

se o teu vazio é feito de punhais?



Que significa “estavas, posta no esquife”? Tão branca e tão distante como os versos de Camões que ecoam. Esses sonetos a fazem ressurgir aquela Inês posta não no esquife, mas no trono, depois de morta. Mas aqui o sujeito também morre, “como num trono”, pois ela morta não está, mas dormindo livre; e agora ignota, que sei que sabemos daqueles seus punhais?

E os sentidos se perdem, pois a morte, toda morte é inexplicável, não podemos explicitá-la, submetê-la a um conceito. Ela reside além da conceituação. A morte tudo mata, inclusive o pensamento, a linguagem e o discurso. Que podemos nós dizer na porta da morta? Que é a morte, senão um não, que não admite explicação, como disse outro poeta. Lágrimas de Orfeu significa a morte do poema, a morte do Eterno, depois de a mãe ser “posta em esquife”, naquele terrível verso camoniano, as relíquias, os pertences, o vestido de linho desbotado, o sapato, o chinelo, a nuvem, tudo posto num saco tosco, humilde e roto, o legado de uma tristeza infinita, porque o tesouro se enterrara com ela mesma, e não há como dizê-la, depois de a mãe ser posta em esquife cessa o ato poemar. A morte da mãe é a morte da literatura. De um lado a mãe-poema – do outro o nada, o vazio, o vácuo, o olho cego negro da morte.

“Para nos darmos conta da ação psicológica de um poema, teremos pois de seguir duas linhas de análise fenomenológica: uma que leva às exuberâncias do espírito, outra que vai às profundezas da alma”, escreveu Bachelar, em “A poética do espaço” (p.187).

O canto se engasga em rugidos carcerários, impotentes, de barro, quilhas, peito, e onde o poeta revela seu modelo Jorge de Lima, a poética inconsciente, seu traçado. A viagem que leva à morte, ao fim dos tempos, às ampulhetas, as ressonâncias. A que escuro mar foi levada aquela amada? Aquelas viagens se tornam a viajar. A lembrança neste fim que sempre volta, algo inumerável, roupas no tanque, fantasmas trastes. A voz da mãe. Calvário de lembranças.

O soneto pós-moderno é aquele que faz reflexões literárias, como a lembrança de Mansour Chalita. Ou seja, o poeta ressalta o caráter literário da obra, que se refere a si mesma. O poeta como que diz: “isto é literatura”. Ou “não chore, isto é apenas literatura”.



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