Por Rogel Samuel
- Nossa infância era toda iluminada
pelas
fontes da tua juventude.
Armadura
que tínhamos freqüente
para
afastar as sombras e o perigo.
Eram
fartos os dias com teus peixes
mergulhados
no arroz: postas de ouro
não
largavam seus brilhos nem suas luas.
Na
escassez, entretanto, te inquietavas.
Ainda
te vejo, o porte esbelto indo
por
aqueles baldios transparentes
onde
a luz, de tão verde, pincelando
os
ermos, quanta música expandia!
Voltavas
quase noite ao doce abrigo,
e
o mundo inteiro, mãe, vinha contigo.
Aqui a mãe dá a vida, ela é fonte da
juventude, da proteção, a fartura, a nutrição.
O texto é escrito com o forte intuito de
buscar, de recuperar a imagem da mãe no passado do próprio texto, aquela linguagem,
aquela criatura divina, dama antiga, fada e santa, busca infinita de volta à
fala do útero materno, ao ninho antigo, àquele aconchego materno, onde tudo
estava em paz, onde nela nos alimentávamos, nos encontrávamos com nossa
originária semente, e para isso, para esse canto, o poeta pede a voz do
pássaro, o pedal das nuvens, procurou, como Narciso, na água dos regatos, a
imagem aquela que em nós dela nunca se esquece.
Mas nada. Somente nos versos há a sua
fotografia.
- Fui pedir ao canário que me desse
um
raspão do seu canto fragmentário;
fui
às nuvens do céu pedir mais nuvem
para
o leve pedal que emite a voz;
debrucei-me,
também, sobre os regatos
em
busca de tua face; a brisa, enfim,
tentara
descrever-te mas não pôde.
Andei,
assim, por montes e calvários.
Ajoelhei-me
ante o Cristo, bebi vinho.
Nada
pude captar, nenhum remorso
fora
maior que o meu nessa procura.
Somente
agora, mãe, na tecelagem
destes
versos que fiz para louvar-te,
em
tudo posso ver-te e posso amar-te.
Os versos são para louvá-la, recuperar a
sua imagem, o seu amor.
O que a lembrança traz, porém, gera o
pavor, o horror da recordação, o recordar daquela cena que não devia de ser
nunca levantada, a agonia, a morte, a terrível e insuportável cena, daquela que
foi fonte da vida, da alegria fonte, da proteção origem, abrigo, auxílio,
amparo, e por quê?, como de repente aparece este “estavas, posta no esquife” -
Não! Não quero vê-la! Não a posso ver, ainda que ela esteja ali liberta como
num trono, entronizada no Eterno, sonho
rente à luz, Iluminada – a morte vem também como vieram galáxias, vales luminosos,
auroras – mas por teres desaparecido mais sombrios os dias aqui deixados – como
no soneto de Camões:
- Estavas, posta no esquife, igual a
todas
as
defuntas convulsas, lapidadas.
Tão
branca e tão distante companheira
destes
ventos na pausa da agonia.
Quisera
ter morrido quando foste,
nave
de ti somente, abrindo rotas
na
invisória partida, nesse coro
latente
em nossas almas. Parecias
dormir,
então, liberta como um trono.
Ó
lágrimas de Orfeu, tempo escoado,
corpo
de insones ânforas, mãezinha,
que
sei de ti nos guantes da saudade?
Que
sabemos de ti quando te vais,
se
o teu vazio é feito de punhais?
Que significa “estavas, posta no esquife”?
Tão branca e tão distante como os versos de Camões que ecoam. Esses sonetos a
fazem ressurgir aquela Inês posta não no esquife, mas no trono, depois de morta.
Mas aqui o sujeito também morre, “como num trono”, pois ela morta não está, mas
dormindo livre; e agora ignota, que sei que sabemos daqueles seus punhais?
E os sentidos se perdem, pois a morte,
toda morte é inexplicável, não podemos explicitá-la, submetê-la a um conceito. Ela
reside além da conceituação. A morte tudo mata, inclusive o pensamento, a
linguagem e o discurso. Que podemos nós dizer na porta da morta? Que é a morte,
senão um não, que não admite explicação, como disse outro poeta. Lágrimas de
Orfeu significa a morte do poema, a morte do Eterno, depois de a mãe ser “posta
em esquife”, naquele terrível verso camoniano, as relíquias, os pertences, o
vestido de linho desbotado, o sapato, o chinelo, a nuvem, tudo posto num saco
tosco, humilde e roto, o legado de uma tristeza infinita, porque o tesouro se
enterrara com ela mesma, e não há como dizê-la, depois de a mãe ser posta em
esquife cessa o ato poemar. A morte da mãe é a morte da literatura. De um lado
a mãe-poema – do outro o nada, o vazio, o vácuo, o olho cego negro da morte.
“Para nos darmos conta da ação psicológica
de um poema, teremos pois de seguir duas linhas de análise fenomenológica: uma
que leva às exuberâncias do espírito, outra que vai às profundezas da alma”,
escreveu Bachelar, em “A poética do espaço” (p.187).
O canto se engasga em rugidos
carcerários, impotentes, de barro, quilhas, peito, e onde o poeta revela seu
modelo Jorge de Lima, a poética inconsciente, seu traçado. A viagem que leva à
morte, ao fim dos tempos, às ampulhetas, as ressonâncias. A que escuro mar foi
levada aquela amada? Aquelas viagens se tornam a viajar. A lembrança neste fim
que sempre volta, algo inumerável, roupas no tanque, fantasmas trastes. A voz
da mãe. Calvário de lembranças.
O soneto pós-moderno é aquele que faz
reflexões literárias, como a lembrança de Mansour Chalita. Ou seja, o poeta
ressalta o caráter literário da obra, que se refere a si mesma. O poeta como
que diz: “isto é literatura”. Ou “não chore, isto é apenas literatura”.
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