quinta-feira, 26 de abril de 2012

DUETO PARA SOPRO E CORDA


 O PRIMEIRO SONETO

Mil novecentos e quarenta e cinco.
Mercado Público Adolpho Lisboa.
Da caneta tinteiro então me escoa
a letra (quase) de um soneto extinto.
Teria ele o saboroso vinco,
a magia do branco, a dor que soa;
não precisava de rimar à toa,
nem tinha chave, mesmo que de zinco.
A caneta importada, o Suplemento
de Artes & Letras deram-me, talvez,
a ilusão desse extático momento.
Eram versos tomados, em surdina,
a um tempo que perdi. Fora-se a vez
de um começo que nunca se termina.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

AGENDA 1965

22/23/maio


Posso dizer como a Betina da coluna social: Max Martins de passagem por Manaus, abraçando os companheiros do Clube da Madrugada.- Um domingo igual aos outros. Eliana ainda com febre. Permaneço em casa, lendo e cuidando da menina. Ao refletir sobre a província, vêem-me aquelas palavras do Ernesto Pinho: é aqui que devemos ficar até um dia sermos descobertos pelo mundo.

24/maio


A imensa tortura da espera. Nada mais chato do que esperar. Falava um seringalista do Alto Purus que a justiça brasileira foi feita para quem vive mil anos. Quem sabe por isso trocaram no Acre a lei do Direito pela lei do rifle 44. Enquanto isso, em nosso caso, a paciência desgasta o paciente, ou, quando se alcança o objeto de tanta expectativa, a vantagem virou farinha e a farinha, ventosidade.


25/maio


¨Ascensão e queda do terceiro Reich¨, página 206: ¨O destino – observou Speidel a propósito do vacilante general Fromm – não poupa os homens cujas convicções não se harmonizam com a vontade de pô-las em execução¨.


26/maio


Terminei ¨O Gato¨, poema . Com mais alguns do mesmo quilate, reúno uma plaquete e faço que ela chegue à ¨A Porta de Livraria¨, de Antonio Olinto, antes do encerramento do concurso. Já lhe enviei o ¨chão sem mácula¨, ainda sem resposta. Mas a falta de sorte inclui também o silêncio do Getúlio Alho, a quem remeti uma carta falando do projeto de uma antologia de contos.- Mais uma explosão do padre à porta de um jornal da avenida Eduardo Ribeiro. Agora ele envolve meu nome não sei em que assunto, nem quero saber. O mal se destrói por si mesmo.





sexta-feira, 20 de abril de 2012

DUETO PARA SOPRO E CORDA


   SONETO DOS OITENT ´ANOS

 

   Aos poetas e outros amigos da ¨Sexta Literária¨

   do Ideal Clube de Fortaleza

     

  

  Sou grato, como sempre, animal grato

  a vós, hermanos, que me deram paz,

  o afeto que nos unge; e, assim capaz

  brindo os 80 em ritmo transato.

 

  Felicidade em tê-los!  Me arrebato

  ao ver-me aqui, na Sexta: a união que faz

  das artes a maior, pois que ela traz

  o dom de ser amigo, amigo nato.

 

  Nestes tercetos me consola o tema,

  a tônica do encontro e da demora,

  o ser que sou nos braços de Iracema.

 

  Se aconteceu, de vós já me enriqueça.

  O tempo que se foi que seja agora

  e o que será depois, me reverdeça.

quarta-feira, 18 de abril de 2012

QUANDO AS NOITES VOAVAM



XII


Transmitindo aos irmãos sabença e coragem,

Boléka, no entanto, ensinava a matar.

Matava por brincadeira.

Um formidável exército de onças

seguia-lhe os passos,

comendo os despojos da luta

e aumentando de tamanho.


reinava a escuridão, chovia sangue.

As onças infestavam o mundo.


Por isto, os kumus confundiram Boléka,

retirando seu caminho de volta.

logo, todas as feras desse bando

já foram se metendo, de uma a uma,

na pele da onça Invisível do Universo.


só então Boléka notou

que o trocano voltara a guiá-lo,

tocando devagarzinho.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

AGENDA 1965



10/maio


Nada há no mundo que não se possa complicar ou simplificar. Amanhã eu emendo as fraturas da complicação. A natureza é o que é: os olhos de um tigre só podem reproduzir o tamanho de seu estômago. Para quebra dessa harmonia entre o antropóide e a solidão das cavernas, criaram-se as mãos. Por si mesmas iluminadas. Tão cerebrinas, tão contraditórias. Afáveis, armadas de osso, facas, rosas.

* Waldomiro:aval. Se o empréstimo der certo, eu me livro do BCMG até segunda ordem. À tarde compareço na ferragem do Sanches. Trata-se de conseguir uma Carteira Profissional para seu irmão que teve uma perna amputada.- Max Martins novamente em Manaus. Uma festa para todos nós, seus amigos do Amazonas.


12/maio


Continuamos à escuta das vozes do Planalto, na Hora do Brasil. Leio um poema de Thiago de Mello, que chega aos 38 anos de idade.


15/16/maio


Exclusivamente familiar. Minha filha Eliana com febre. Examino o jornal e verifico que o suplemento está bom. Centenas de leitores devem achar o mesmo ao gesto que me leva a dobrar esse pão que nos consola, anima e ressuscita. Sou designado Diretor da página literária do CM. A responsabilidade fica maior, mas eu tenho o editorial da mesma para ir dando o compasso da dança, orientar os leitores sobre as transformações ocorridas, sempre por via de acordos ou cisões entre pessoas ou grupos da mesma falange.


17/maio


D. Lídia Caldas, depois de D. Alcinda Doca e do professor Perneta, foi minha última educadora em Sena Madureira. No quintal da escola, nós, todos os alunos, tiramos uma fotografia no ¨Dia da Árvore¨, ainda hoje conservada por ela nas folhas de um álbum. Por acaso me encontro com minha boa mestra na avenida Eduardo Ribeiro, nem sei recordar quantos anos após esse dia memorável. Ao chegar na redação do jornal, registro numa tira de papel: ¨Os tempos mudaram, D. Lídia. Do meio agreste onde vivemos parte de nossa vida, eis que só resta esse perfume que nos chega entre o lamento das carroças puxadas a bois e os pés de eucalipto segurando os barrancos. O ABC que nos ensinavas entre as manhãs agitadas do porto e as tardes fagueiras do poeta Casimiro de Abreu, converge agora para ti como um de nossos cadernos cheios de desenhos alusivos à data de teu aniversário. Na foto envelhecida, ali estou eu de calças curtas e cabelos revoltos, observando o plantio de um belo exemplar da flora acreana. Retorno ao pequeno universo da infância, ao bosque velado entre murmúrios e suaves crepitações adormecidas. Quantas recordações.¨


sábado, 14 de abril de 2012

DUETO PARA SOPRO E CORDA


  SONETO AO POETA ALMIR DINIZ

(respondendo sua carta}

 

Almir Diniz, que em poucas linhas diz

tanto quantas imagens necessita

para saudar a quem, por essa dita,

vai ser agora muito mais feliz:

 

Não fora coincidência, a sorte quis

que a pluma nos unisse; estava escrita

esta amizade que entre nós habita,

sendo eu, do mestre, humílimo aprendiz.

 

A carta que recebo neste dia,

carta-poema desse velho amigo,

abre clarões na sombra que me guia.

 

Muito obrigado pelos teus florais

dourados, com que vês o que não digo,

fazendo ser o menos algo mais.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

AGENDA 1965



06/maio


Prossigo na leitura do Terceiro Reich. Assalta-me uma vaga certeza de que já estamos em plena Terceira Guerra Mundial. E o pior de tudo é que os métodos dos nazistas passaram às normas políticas das chamadas democracias do Ocidente.- O pau canta em São Domingos. Tropas brasileiras de prontidão para o embarque, enquanto os esforços maiores dos ianques ficam concentrados no Vietnam do Norte.


07/maio


Na opinião de um crítico português, Fernando Pessoa representou bem uma corrente naturalista e simbolista de transição ao modernismo de hoje. O curioso disso é que eu, sem ser português nem crítico de literatura, falei sobre esse fato numa de minhas palestras informais sob a copa do mulateiro, na praça do Ginásio. Pura intuição.

Acordo e tomo o rumo do jornal. Horas de muito abatimento íntimo.


08/09/maio


Percebo que meu velho (e bom) pai começa a perder a lucidez. Agora que espero colher os frutos de minha luta da vida inteira, e dividi-los com eles (meus pais). Adentro, pois, essa antiga morada da avenida Joaquim Nabuco a sentir um aperto cada vez mais forte nas vacilantes coronárias: a cena rústica do convívio doméstico deteriora com mesas e cadeiras desconjuntadas, ambiente escuro, paredes úmidas, quintal tomado pelo mato.


N. do A.: Neste mesmo ano eles foram transferidos para a casa de meu irmão, à rua J. G. Araújo, 40, no bairro de Santo Antonio, ao qual fiz o repasse da indenização paga pelo Dr. Paulo Jacob, proprietário do imóvel desocupado, tendo em vista a necessidade de construção de um anexo para seu abrigo. Amiudei minhas visitas ao bairro e ao seu novo lar, até que, em 1973, iniciando a edificação de minha última casa em Manaus, passamos a residir perto deles, mais precisamente na mesma rua J. G. Araújo, número 94.

* Comunico ao Ulisses Paes de Azevedo minha decisão de renunciar ao cargo de Redator da empresa Archer Pinto. A seu pedido, contudo, permaneço ainda por mais duas semanas.


quarta-feira, 11 de abril de 2012

DUETO PARA SOPRO E CORDA


NATAL EM MEU BAIRRO

                                          para Almir Diniz

     

 Depois da chuva queda-se uma pluma

 sobre o bairro em que moro. E das janelas

 vê-se o dia enrolado nas flanelas

 de um céu que cresce e aos poucos se avoluma.

 Em busca de outro azul o olhar se exuma

 das cavernas do ser; ainda mais belas

 as mãos de Deus dão sopro às aquarelas

 e as estrelas se acendem, de uma a uma.

 A pluma agora pousa na varanda

 de um pedaço de chão, onde há, contudo,

 auras e nuvens que o desterro abranda.

 Corre um frisson no ar: pelejam-se asas

 por trás da luz que paira sobre tudo,

 e acolhe o Cristo em todas estas casas.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

QUANDO AS NOITES VOAVAM



Foi assim que Boléka retirou do paricá


o seu fio de plumas

e traçou os caminhos do universo.

Para iniciar essas andanças,

um trocano escondido o guiava,

tocando sozinho.


no mesmo lugar

ele deixou também um espelho invisível

que soltava faíscas

enquanto o guiava pelos quatro cantos do mundo.


domingo, 1 de abril de 2012

DUETO PARA SOPRO E CORDA


SONETO PARA SÉRGIO PANDOLFO

 

 

Da Ribeirinha aos cantos da conquista,

de Camões a Pessoa e deste a nós,

o português geofônico e a sós

se expande além do mar e além da vista.

 

Caravelas de luar, sol de ametista,

nele outras línguas antes dele e após

fazem seu néctar: músicas da voz

sobra enfim do massacre indigenista.

 

Delícia azul, velejo ultramarino,

marca-lhe os sons o ferro da saudade,

prisão do afeto náutico e salino.

 

Para tanto sofrer, tão grande fama.

Morre num catre o gênio dessa Idade.

Por todo o orbe seu clarão derrama.