sexta-feira, 29 de junho de 2012

Folhas da Selva

    O autor deste livro, poeta Aníbal Beça, já lida com as fibras do haicai (viajando com Bashô) desde que a primeira folha desse curioso ideograma poético japonês consegue respirar o aguaceiro do inverno e sente, na forma do crisântemo, o zen da primavera.

                           Neste Folhas da Selva o haicaísta amazônico retesa ao máximo o arco de seu dia esponjado de lua, água, movimento e descoberta, até onde uma síntese verbal pode servir de exemplo à fixação de um sonho acordado, seja quando surpreende a resistência da flora ao calor insuportável das chamas, seja quando o aroma do café matinal se mistura ao domingo e sabe ao travo da baunilha.


                         Sutileza, respeito à tradição oriental, e sobretudo poesia, marcam a leitura desses textos que são, ao final, um só e bem estruturado poema, constituído de muitos outros do mesmo quilate, parecendo mais uma leve e  prolongada sinfonia, cujo tema central, a natureza, alterna com a bulha da cidade, o colóquio doméstico, o muro ácido dos gatos e o boi de piranha, entre armários e sapatos.


                      Dividido em partes condizentes com as várias fases de seu périplo em torno da magia floral encarnada nesses trísticos de origem nipônica, Folhas da Selva aproxima de nós o que só uma lente microscópica consegue fazer para transformar um simples pistilo silvestre numa galáxia de rosas. Na intensificação de vivências da infância e da província de seus amores, o poeta invoca, também, os mitos do folclore amazônico, a singeleza vencida pelos grandes edifícios plantados sobre bosques e sítios pitorescos, enfim, a nostalgia dos trilhos “riscando por ruas tortas – o bonde e a minha vida”.


                      Súmula aproximada, talvez, dos melhores haicais do Autor, esta obra nos dá, porém, a medida exata daquilo que é feito com amor e arte, conhecimento do ofício versus aplicação da palavra dentro do próprio motivo que a inspira; além de ser, daqui por diante, um breviário de consulta e alimentação para o verdadeiro modo de caminhar pelas sendas de oku.  Ali donde se ouvem os estalos da semente que leva à flor, ou da flor que leva à semente.  


                      Entretanto, o certo é que Aníbal Beça, dedicado cultor do haicai, procura reunir precisamente em formato de Livro (agora com L maiúsculo) o que seria a visão ou a ideia do poeta sobre esse tipo singular de composição ideográfica, antes de manejo coletivo, mas que sublinha a liberdade de cada um sob o paradigma de “achar” o melhor como um belo exercício que faz do homem uma árvore de palavras, gorjeios, tenuidades, vazios, saltos repentinos, ecos e ressonâncias.


                      O poeta, instalado frente ao computador, beneficiário da Internet, por mais que se esforce ele não troca o seu chão nativo pelos bisonhos fantasmas da virtualidade eletrônica, mas utiliza os recursos práticos da engenhoca moderna para tornar viável o sonho de permanecer incólume aos possíveis estragos do avanço científico.


                     Segundo Bashô: “Não durmas duas vezes no mesmo lugar; deseja sempre uma esteira que ainda não tenhas esquentado.” Ou como diz Aníbal:


                                                                                                     Pluma de pássaro
                        pousa suave no pátio –
                                                                                                     nasce um cabelo branco.

terça-feira, 26 de junho de 2012

DUETO PARA SOPRO E CORDA


II

Morto para sempre? O que dizer,
se a própria metafísica se esquece
que o pilriteiro, em ramos, não floresce
onde não há ninguém para morrer?

Morto para sempre? Ser ou não ser,
nostalgia de um quando que apetece...
O que nasce, definha; e o que amanhece
há-de ao nada, sem dúvida, volver.

Desperta-se do sono com a surpresa
de Lázaro da breve noite escura
ao lento enrubescer da natureza.

Para sempre se morre? Assim, precário
vai-se o corpo visível da impostura,
mas fica, dele, o corpo imaginário.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

DUETO


SONETOS PARA MARCEL PROUST

Que fazes, Proust, ao léu do teu cenário,
ao léu da infância que em teu rosto asila
da época feliz um tom de argila
e do vinho natal esse ordinário

calor do pão na mesa onde cintila
aquele estigma azul do legendário
sangue teu que nascera de um canário
posto no tempo como numa vila?

Em busca desse tempo então largaste
velames de metáforas, ao espanto
frágil daquela que tu tanto amaste.

Anos perdidos? Ganhos no entretanto,
pois em troca do sonho que sonhaste,
outros nos deste para nosso encanto.

terça-feira, 19 de junho de 2012

AGENDA 1965,





21/junho
A Lei federal que dá amparo e direito líquido e certo à demanda de quinze mil servidores federais, leva o número 3870 e é de 1960. A política econômica está nas mãos do Dr. Roberto Campos.- Carta do Antísthenes sobre um emprego no governo do historiador Arthur Reis. Espero êxito do amigo.- Recomeço a pôr alguma ordem na casa dos velhos: mudei o pavio da geladeira a querosene, fiz limpeza, paguei uma parte das dívidas contraídas. Reformas nos móveis e outros benefícios introduzidos de tempo em tempos, são iniciativas inócuas ao se oporem a obstáculos de ordem espiritual que atuam no ambiente familiar.- Consegui um empréstimo no BCP.
24/junho
Nossas farras homéricas cedem à reflexão do momento. Me volto às leituras com relativa disposição. Seis meses se passaram desde que me propus a respigar este banalíssimo cotidiano, pedaços de vida sem cor, nos quais, entretanto, reluz a vontade inquebrantável. Basta-me hoje o sorriso de Eliana na simplicidade de nossa varanda, esperando pelo pai.

26/27/junho
Re-assisto, no Cine Guarany, ao ¨Luzes da Ribalta¨, de Charles Chaplin, o Carlitos, sobre quem, depois de ver o ¨Luzes da Cidade¨, escrevi uma crônica que agora descubro entre outros recortes dos anos 50. Ela foi publicada em ¨O Centro¨, do Colégio Estadual do Amazonas, na gestão de Agostinho Balbi, irmão do Agnello. Hoje ela me parece mais um mini-conto.

domingo, 17 de junho de 2012

ROGEL ESTUDA TUFIC

ANTONIO CARLOS ROCHA

http://estudoliteraturas.blogspot.com.br/

Professor doutor em Teoria Literária, aposentado da UFRJ, autor de vários livros e consagradas reedições, Rogel desta vez partiu para um bonito ensaio. Diga-se de passagem que Rogel tem uma produção webensaística impressionante pela quantidade de textos.

Quem nunca fez versos elogiando a mãe? Certamente inúmeros fazem, fizeram e farão, com dotes poéticos e não-poéticos. Mas o interessante é que Samuel captou nas entrelinhas da obra poética de Jorge Tufic, algo mais que simples e merecidas declarações de amor à digníssima mãe.


Vejamos algumas palavras de Rogel Samuel:

“O pequeno livro é uma obra-prima em quinze sonetos. E começa por uma invocação.

Ler é nomear sentidos, faze-los funcionar, dar-lhes corda, os sentidos estão e/ou partem dali. Ler é um ato de mobilidade, de por em movimentação os sentidos. Mas não todos. Não há um todo, um limite. Por isso, diz Barthes, o esquecimento crítico é um valor do texto, haverá sempre sentidos esquecidos, nunca se poderá reunir todos os sentidos na arena da rigidez de uma grelha analítica.

Na filosofia se definem falar e dizer; num certo sentido: o falar remete ao falante, o dizer remete as coisas mesmas ditas”.

Resumindo: a arte de Jorge Tufic, que estreou na poesia em 1956, levou/inspirou Rogel a altos vôos filosóficos.

Gratidão aos dois: ao primeiro pela beleza poética, artística, estética e outros sinônimos. Ao segundo pela magnífica aula de filosofia.

sábado, 16 de junho de 2012

VÍDEO

DUETO PARA SOPRO E CORDA,

SONETO À MANEIRA DE ILDÁSIO TAVARES

Brasil nasceu de brasa; de vermelho,
e em brasa transformou-se o pau Brasil,
para tintura, esteio, amor senil
de reinados banais diante do espelho.
Mata chamada atlântica, pentelho
agora de rochosa e varonil
despetalada costa do Brasil:
quem foi que disse que adiantou conselho?
Rotular em favor da ecologia
também faz rir ao tolo que não sente
que as árvores são luz: tudo rebrota!
Tudo que guarda a verde sinfonia,
salta das ruínas inda mais contente
por ter sonhado, apenas, com a derrota.

quinta-feira, 14 de junho de 2012

DUETO PARA SOPRO E CORDA

SONETOS PARA GUIMARÃES ROSA

                       
II

Passarim-passarão, rosa-de-rosa,
o arguto adeus se voa rio-acima;
ave ribeira entregue ao que não rima
mas colhe aromas para o som da prosa.

De ver se faz o til, o lá de anosa
raiz no brejo tendo a si e ao clima
donde sai beija-flor, roseana estima
por um dizer com seiva luminosa.

Fazer o achado, a busca, nunca a trava
do ponto a qualquer flor, texto ou gorjeio,
foi lei-que-foi no tempo que se lava.

Dos estirões da saga emerge o veio
do teu léxico novo; ali se andava
rosa-sertão bem antes do que veio.

domingo, 10 de junho de 2012

POEMAS

Vênus


Dá-me, Apeles, o sangue dos teus dedos
e as cores deste mar, espuma ardente
em que Vênus ressoa e se reparte
entre deuses e bichos, céus e terras,
para que a louve, prostituta imensa
feita de orgasmo e sol. Pombos e cisnes
a conduzem nos braços da Volúpia
onde ela exerce, pleno, o seu domínio.
Mas, de repente, queda-se cativa
de um mortal como Adônis. Tão completa
me parece esta deusa que seu brilho
tem, sobre nós, a calma perspectiva
de uma fúria saciada: um simples nome
que a eternidade rútila consome.


Restinga's Bar



Sou tão frágil, meu bem, que um som, de leve
pode ser-me fatal como o teu beijo:
qualquer música brega, qualquer frase
pode ser-me fatal. E, assim, não deve
a brisa andar tão próxima à tormenta,
como não deve o ritmo da valsa
transformar-se em punhais; a vida é breve
e aquilo que é demais logo arrebenta.
Sou tão frágil, meu bem, que nada pode
separar-me de ti. Teu nome é um sonho
que navega em meu sonho. Tenho pena
de tudo, algo me aflige e me sacode.
Desliga esse Gardel, bota um canário
em vez do som, da voz que me condena.



Voragem


Rostos que nunca vi, jacintos murchos
cujas sonatas frias me tocaram,
estes rostos não quero: eles são breves
no desfile das pálpebras cerradas.
Penso naqueles outros, familiares
rostos de toda a vida. Cataventos
da rua ainda sem nome, alagadiço
porão da infância, arpejos e trigais,
dai-me a ver novamente ou mesmo em sonho,
estes semblantes nunca repetidos,
graves alguns, mas todos inseridos
na memória dos dias voluntários.
Cemitério, talvez, dessas lembranças,
todas, em mim, são rosas e crianças.






 Soneto arqueológico


Babilônio sutil, meu queixo fino
sobrevive às catástrofes; num vaso
posto a secar, meus olhos comparecem
entre os botões da noite milenária.

Sombras do Tigre, mágicas do Eufrates,
algo resta de nós. E disto apenas
tudo volta a crescer, tudo se extingue
feito o barro dos códigos severos.

Quem me decifra além dessas batalhas?
Quem me vê nos coleios da serpente?
Quem me furta do sono e me atropela?

Babilônio sutil, no auge da messe
cozinho para os reis pedras e telhas.
Nas horas vagas sou pastor de ovelhas.



Para L. Beethoven



Meu corpo entrego ao teu silêncio de água,
aos arcos de tua música pairante,
onde as vozes da terra, no seu pasto
de nuvens, resplandecem como lágrimas.


Não sinto mais feridas nem abalos.
Meu sangue jorra lento dos violinos.
E uma luz crucifica-me nos ares
de chuva, por tuas rosas lapidados.



Estas rosas que alteram nosso dia,
e abrem na tarde a súplica dos dedos
que se libertam, pássaros, do barro.



E tocam, com sua forma torturada,
a flor do azul contida e descontida
neste adágio de pedra e de luar.







Destino



Um tear
e uma aranha
ponteiam meu destino.
Quando o tear se esgota,
a aranha pega o fio
e sobe.



A leitura deste signo
gasta-me o zodíaco.






Sistema


O desenho de uma estrela
quantifica o papel
deslumbra o vazio.




A simplicidade
equaciona o absurdo.


 

sexta-feira, 8 de junho de 2012

QUANDO AS NOITES VOAVAM


3. Antes o mundo não existia.

Com a reza de breu escondem suas malocas
e renovam o fio de plumas invisíveis.
Assim, os pajés caminham sobre ele
e não deixam cair os raios sobre as casas.


Com a fumaça do cigarro, os kumuá escondem
a si mesmos para não serem vistos.


na ida dos pajés eles fazem a reza do breu
e do cigarro; e na volta deles,
um mês mais tarde,
apenas a do cigarro.


Ainda hoje os kumuá fazem esses ritos,
para evitar que os pajés se desviem de sua rota
e pratiquem barbaridades...



Com a prisão de Boléka pelos brancos,
toda a sabença do mundo
virou conhecimento;
todo conhecimento virou progresso,
e todo progresso, como fez aquele,
acabou por errar o caminho de volta
para a casa de seus avós.

A onça Invisível do Universo,
agora mesmo ela está em suas mãos.


quinta-feira, 7 de junho de 2012

FIOS DE LUZ, AROMAS VIVOS


DUETO PARA SOPRO E CORDA

SONETOS PARA GUIMARÃES ROSA

                                   I

Palavras andam, mas também se afogam.
Voam de três, no mais: de banda, não.
Em Rosa elas são aves, condição
dos tenórios volantes que dialogam.

As palavras poéticas se drogam
do cheiro que se vem de algum sertão;
traçam caminhos de minhoca, vão
do texto à traça, quando se derrogam.

Resvés, parceira do menor estalo,
diminutiva, crítica, vermelha,
da cor do vinho de Sardanapalo,

 Ave, palavra que este grito espelha,
formiga azul que vai de talo em talo
para eclodir na íntima centelha.

terça-feira, 5 de junho de 2012

AGENDA 1965


15/junho
O gesto amargo do Presidente da República, mandando nossos processos de volta ao setor de origem, no caso, o DASP, altera consideravelmente os planos que tenho (operações-base) ainda para o segundo semestre de 1965. Os compromissos inadiáveis ficam ameaçados. Mais lenha na fogueira do desespero, mais desespero no lenho da crucificação.

16/junho
Fomos ao Grande Circo Mexicano. A meu ver, circo deve ser primitivo, original, sem a penosa mobilização de animais. Neste foi bom o desempenho dos trapezistas. Três palhaços coadjuvantes que entre um número e outro souberam diversificar as maneiras de rir, aumentando os aplausos. No mais, repetição e pastiche.
N. do A.- Algumas anotações datadas insistem na concretização de nossos sonhos como Servidores do Estado, lamentando a demora de Brasília e do Presidente em concluir por menos burocracia e mais ética no despacho dos processos em que somos interessados; e daí, também, a queixa nas dificuldades financeiras. Tenho saltado essas datas e, ante os assuntos repetidos e lamuriosos, vou saltar ainda mais até o final da agenda. Um exemplo de saturação vai na quadrinha abaixo, de 18/junho:

Problemas, problemas,
problemas sacaneadores,
em vez de belos poemas
dão-me apenas dissabores.


19/20/junho
Continuação de leitura do ¨terceiro Reich¨: o levante do gueto de Varsóvia. Pela manhã fui à Praça Gonçalves Dias, bati um papo com a turma do Clube. A seguir uma volta pelos bairros no jipe do Evandro Carreira. Tomamos um litro de Iauca sentados à mesa de um bar no ¨clima frio¨. Às 12:hs regresso ao lar, trazido no jipe com o Amazonino ao volante. Calor intenso. Rio parado, catraias indo e vindo entre as margens do igarapé. Agora um pouco de sesta.