quarta-feira, 31 de outubro de 2012

DUETO PARA SOPRO E CORDA


O CRISTO DE SARAMAGO

A rede, sim, transluz-se e colhe o peixe.
A terra é sangue, inútil proteção
ao cordeiro aflitivo – que se o deixe
manumisso da horrível sagração.

A tempestade, o mar, o rubro feixe
se azula em mim nos touros de um clarão...
Ventos, parai! Que o mundo não se queixe
dessa fúria de Deus em minha mão.

Que são curas, milagres como o vinho,
meus pássaros de areia, o gesto santo
no adiar-se a vida para mais caminho?

Uma simples mulher curou-me, um dia,
das chagas com suas lágrimas; e o quanto
dera-me alívio à cruz donde eu pendia.

AS ÁGUAS DO QUE VERÃO




AS ÁGUAS DO QUE VERÃO


Jorge Tufic

Não sei com que voz, muito menos com que letra, tornar-me solidário ao grito coletivo daqueles que sucumbiram nas catástrofes da região serrana do Rio de Janeiro, para falar apenas nesta, tudo unicamente por culpa do próprio Governo, que nas circunstâncias atuais deixa de merecer este nome, para equiparar-se à ralé dos mais desprezíveis políticos deste País.

Repugna também ao mais insensato admitir, neste caso, que o Brasil já não tenha passado, desde a morte de Getúlio Vargas, às mãos hediondas de meros politiqueiros, ladrões e sacripantas.


Nova Friburgo, detalhe da destruição. Foto Ag Estado 
A consciência anestesiada de milhares apenas ocupados com esporte, carnaval, tóxico e outras variadas diversões alienadoras, impediram de ver e gravar para sempre estas imagens que fizeram a nossa angústia e a nossa desesperança num futuro melhor. Estavam eles, nesse mesmo dia e nessa mesma hora, amontoados nas ruas para receber um jogador que vinha de fora, ao aceno contratual de um time de futebol.
Os demais brasis, de igual modo, cuidavam de si e de suas miudezas, enquanto as televisões anunciavam, naquele crescendo vocal que alterna com as imagens dramáticas de resgates nem sempre bem sucedidos, a maior tragédia “natural” já ocorrida em nossa ex-Capital da República. Pois esta não foi, nem é, uma tragédia natural.



A ocupação das encostas tem muito a ver com milhares de outras ocupações, quer nas serras, quer nas grandes cidades, periferias urbanas, florestas e rios, estes, podres, aquelas, agonizantes. A tragédia é global, embora, algumas vezes, silenciosa.


Uma lágrima é pouco, mas suaviza o caudal das chuvas, enquanto o sorriso é maior ou menor, se temos que assistir ao salvamento de uns, e, às vezes, ao inexplicável e tormentoso destino de tantos outros.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

JORGE TUFIC NO RIO DE JANEIRO

JORGE TUFIC acaba de ganhar o prêmio Raul Bopp da União Brasileira de Escritores do Rio de Janeiro.
Data da premiação: dia 26, às 15 hs, no auditório da
Academia Brasileira de Letras.

(FOTO DE R. SAMUEL)

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

QUANDO AS NOITES VOAVAM,




Iapinari


é a pedra que vê.



kixti Tukano

(estória e sabença)

o bacurau vive sozinho
e não tem quem o ajude a construir sua casa.
Por isso ele dorme no cerrado.
só se sabe que o sapo fêmea existe
quando ele coaxa.


Antes, o vozeirão do guariba pertencia à anta,
e o assovio da anta pertencia ao guariba.
essa troca foi feita
para evitar o pânico e o medo na floresta.


Pelos mesmos motivos,


o cachorro ficou com o faro da onça
e a onça ficou sem nenhum.
o morcego, enquanto suga,
fica ouvindo os traques de suas vítimas
como se estivesse enfrentando um tiroteio.
o jacu, pela sua vaidade,
perdeu a vez de acordar os outros pássaros.
Ficou em seu lugar o Cujubim,
que não gosta de enfeites e é bom madrugador.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

QUANDO AS NOITES VOAVAM




Báli Bó

Báli bó chorou muito a perda de Abé.
Prometeu chorá-lo durante um mês inteiro.
sua tristeza era tanta
que desejou sumir junto com o filho.


o pesar de Báli bó foi ouvido
por todos os homens e animais da terra,
que se juntaram para chorar com ele.
A anta, sendo grandalhona,
chorava com voz fina, assim:
– panikan, panikan, panikan.7
Panikan: meu bisneto.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

QUANDO AS NOITES VOAVAM




Pinlun

Pinlun perguntou à filha

o que era que seu genro comia.
respondeu ela que comia a eles mesmos, os peixes.

Meio triste, o pai lhe disse, então,
que tinha um velho criado, Maku,
e iria matá-lo para o genro comer.


Gaim pañan aceitou a oferta do sogro.
ele assou e comeu o velho Maku fora da maloca.


Pinlun ficou muito desgostoso
por ter perdido o criado
que lhe preparava o ipadu.

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Uma carta de Ramayana de Chevalier

Uma carta de Ramayana de Chevalier 

 

do BLOG DO CORONEL ROBERTO

 

http://catadordepapeis.blogspot.com.br/


Ramayana de Chevalier, 1958
       Rio, 9 de abril de 1967
        Meu grandiquerido [Jorge] Tufic

A saudade é como a luz, não morre, todos os dias se renova. Vocês do Clube da Madrugada representam, para mim, um retrocesso no tempo, uma viagem amável ao País da Emilia. Poetas, o são como eu aspiro e sinto: vivos, aluando de vida, tontos de luz como os pássaros livres da nossa terra. Gostaria de viver com vocês. Já me distancio na eclética do destino, procurando rosas no meu deserto, mas amando ao Amazonas com todas as fibras da minha paixão.

Nos meus dias de solitude, diante desta Copacabana sofrida pelos cortes de luz recebo sempre dois pedaços do Clube da Madrugada: Antísthenes e Penafort. Poetas, romancistas, talentos de cepa fina, caboclos na mais larga acepção do vocábulo. Trazem-me notícias, livros, composições espirituais da planície. São vozes da floresta, rumos perdidos da selva nesta flumilândia de arranha-céus.

Fala-me de você, de sua casa admirável debruçada sobre o igarapé como a de Pearl Buck em Hong Kong, talhada em madeira de lei, nossas eternas madeiras amazônicas, magníficas perfeições da nossa arquitetura neolítica, olhando as águas como presentes de Deus as almas sequiosas de bondade. Lembro-me de soneto, “Possível Soneto a Dalva”, obra prima da cinzeladura glebária, notável conquista de um talento que representa a nossa raça, a nossa gente, o nosso futuro misturando sírios, franceses, nórdicos, mestiços no imenso caldeirão da Hiléia, mãe santíssima da nossa desventurada sensibilidade. “O resto é uma cidade e nela o meu orgulho”.
Sim, o teu e o de todos esses Farias, Elsons, Bacelares, Américos, Alencares, Ruas e ensaístas como Aluísio Sampaio, Engrácio, Batista, João Bosco Evangelista, um economista como Saul Benchimol, um Jefferson Péres, artistas ao jeito de Afrânio Castro, Getulio Alho, Álvaro Páscoa, Moacir Andrade, Assayag, um ficcionista como Benjamin Sanches, e o miniaturista admirável que é Óscar Ramos, exilado na Espanha dentro da luz e da cor.

E me recordo dessas noites de luar sobre o rio, onde, quando em Manaus, “o fogo brando como Dalva em meu peito, a consumia”. Tu, como um Alfonsus de Guimarães, que assinaria esse soneto a Dalva, namorando uma lua no céu e outra lua no rio, momento eterno de translumbramento, como as genialidades pictóricas desses artistas manauaras ou transplantados para lá, doces Messias da última mensagem, amando desmesuradamente ao Amazonas, frutos de seus esgalhos pendentes, flores dos seus lagos imaturos, nelumbos dos seus igapós dormentes.

Gostei de teus livros, amei os teus poemas. Silvei como as dobras da espessura, buscando imagens e belezas. Arfei como os fatigados manatins dos canaranais, respirando saudades. O capitalismo afastou-me das rotas distantes, impossibilita-me uma visita à minha terra. Há uma pousada a minha disposição. A casa de Stenio Neves, na praça da Saudade, que me foi oferecida,  com o ar condicionado e outras vantagens modernas. Um dia saltarei por ai, de acangatara, ou só com a minha velha tara, rosnando de amor pelo Amazonas, que me atormenta de paixão como um eczema sentimental. 

Anúncio em A Tarde, 1939
Morrerei, Tufic, é o destino. Só me sentirei feliz se o Clube da Madrugada, coletando-me as cinzas, junto com flores de mamorana, descer, uma noite de plenilúnio o rio Negro, despejando-me os espólios na foz, rumo ao mar-oceano... Nessas pedras que andei, hoje asfalto, por essas casas humildes que me convidam ao sonho impossível para os que não poderão jamais compreendê-la.
Vou parar. Meu caminho é como o das lagartas volantes, não marca o chão. Tu, que tens na lama a vibração das palmeiras dos oásis e o fervor pelo destino dos pais, tu que és símbolo do bom filho, do bom irmão e do bom companheiro, tu que és poeta no ar que respiras e na limpidez aos teus momentos interiores, nos quais festejas a Morte, lembra-te do teu velho amigo, do Ramayana que é uma expressão da Amazônia onde quer que se encontre, um traço de Amor entre a terra e o infinitivo, um caboclo doente e triste, cujo sorriso é uma lua à superfície de um lago tranquilo.

Abraço-te a ti e aos nossos irmãos do Clube da Madrugada. Uma tâmara para o teu coração. Um cupuaçu para os nossos paladares boêmios. Meu endereço vai abaixo. Gostaria de entreter com vocês um entendimento de beira de cais. Receber jornais de Manaus, escrever para eles, escutar de longe as novidades da mais bela das cidades do Brasil, junto com a Bahia, porque autênticas.
Como na Roma antiga, direi de toga suspensa e num gesto digno: Vale!
       
Do teu ex-conde

Ramayana de Chevalier

AGENDA 1965



20/set

Sentado ao lado de minha mãe assistimos, juntos, ao sereno anoitecer neste bairro de Santo Antonio. Momentos raros estes, de ternura e reencontro de nós mesmos. Leio Cassiano Ricardo, Bandeira e Carlos Drummond de Andrade. A velha está calma, graças a um remédio indicado pelo MFS. Freqüentemente, vou ao cinema. Combato as saúvas no barranco da rua Izabel. Nos calhambeques em que viajo do centro ao bairro e vice-versa, sinto-me aflito, inseguro. Também, pudera: cada acidente!

25/26/set.

Em Santo Antonio, por arte e obra do amor filial. Fomos de lá à praia de São Raimundo, atendendo ao convite do Jader, que tirou o domingo para beber e falar arrastado. Novas palafitas tomam conta das margens do rio, talvez uma colônia de pescadores. Um pouco além, reses abatidas, em fase de esquartejamento. Pelo contraste com a paisagem tranqüila, uma cena chocante essa do abate a céu aberto.

27/set.

Prosseguem os entreveros na Repartição. Dá pra ver o desnível com a mediocridade, o prejuízo que ele traz ao desejo de progredir. Descontaram-me a falta do dia 31-08, ameaçam designar-me substituto da Haydée Fortunato na emissão das Carteiras do Menor. Enquanto isso eu conto os dias que passam, engulo em seco e procuro abafar no silêncio os golpes recebidos. Aprendo que essa atitude aplaca as iras do inimigo, fá-lo recuar em seus propósitos agressivos. Voltarei a amar a vida, a mergulhar nas corolas da manhã recém chegada. Em casa tomo um banho de cacimba, a que fica no leito do igarapé seco, escondida pelo mato. E que se vê de nossa janela.
01/out.

Empréstimo no Banco da Lavoura para meu irmão terminar a construção do ¨ninho¨de nossos pais. Vencimento da letra: 04-01-1966. À noite, na denominada república livre do Pina, fui preso por uma patrulha da Polícia Especial do Exército, sob o comando do Cel. Ismael, que ali estava para verificar os danos do depredamento do Cyne Guarany por alguns soldados à paisana. O motivo foi de quando, ao avançarem para evacuar a praça Gonçalves Dias, eu ergui meu protesto, chegando a esboçar um murro no oficial arrogante, disfarçado em trajes civis. Do Pina me conduziram numa sinistra caminhonete à Ilha de São Vicente, e o povo engrossando a correr em nossa direção, a certa altura com a Izabel, minha mulher, liderando a passeata. Duas horas após, o General passa por cima da ordem de seu subordinado, e determina minha soltura. Retornamos todos pela rua Bernando Ramos, em apoteose.