quinta-feira, 17 de outubro de 2013

A SUPOSTA CRISE DA POESIA

(FOTO SEBASTIÃO SALGADO)

A SUPOSTA CRISE DA POESIA

Em sessenta anos de Modernismo, divididos entre quatro gerações classificadas de acordo com Ortega Y Gasset, para quem “uma geração é um período ou zona de datas abrangendo cerca de quinze anos que se distribuem sete anos antes e sete depois de um ano central assinalado como época determinante e característica”, a poesia brasileira teve altos e baixos, chegou a encalhar na “experiência” de 45, mas obteve um alento novo através do Concretismo, que lhe propunha uma linguagem não discursiva, verbi-vocal-visual (palavra x som x figura), utilizando o ideograma como forma ideal e muitas vezes caindo no POEMA FIGURATIVO (1). Veio depois do Neo, a praxis, o poema manipulado de Roberto Pontual, a poesia de muro original do Amazonas (fase teórica), o sincretismo pernambucano – e o poema/processo, este último com o objetivo de “dissociar a Poesia (estrutura) do Poema (processo), separando, definitivamente, o que é  língua de linguagem, dentro da literatura” (2). Nesse intervalo sobressaem as manifestações isoladas que pretendem conciliar a função estética da poesia com a mensagem social, a falta de recursos materiais com a publicação alternativa, a poesia marginal, etc, etc. Em “Canto Melhor”, Ed Paz e Terra, Manoel Sarmento Barata orienta  sua crítica neste mesmo sentido.

Verso, palavra, ausência de verso, arte gráfica, processo. Em comunicação apresentada ao I Seminário de Literatura das Américas, Domingos Carvalho da Silva aborda o problema da palavra, o verso e a suposta crise da poesia, recolocando a poesia como verso e o verso na dependência de seus componentes métricos defendidos por Aristóteles, em sua “Arte Retórica e Arte Poética”. No estudo da palavra, o Autor se desdobra amplamente em torno do significado polivalente de signo ou de metáfora que lhe assegura o uso multívoco da linguagem conotativa, isto é, poética, fenômeno que ocorre espontâneamente, no ato de criação do poema, e não de propósito, como quer Umberto Eco, transferindo, assim, para o campo  denotativo da razão o ato semi-consciente da elaboração poética (3). Pondo em relevo o envelhecimento e a morte das palavras, de que se nutrem e renascem outras, ele chega ao Concretismo e à opção pelo retrato daqueles que, temerosos da exaustão da palavra falada e da sintaxe da língua viva, tentaram substituí-las pelos signos gráficos, então considerados elementos concretos independentes do próprio significado e implantados no espaço branco do papel, manifestação, segundo DCS, não de poesia, mas da arte gráfica (4).

Quanto ao verso, defende-o como sendo a própria estrutura da poesia, como a pele do corpo, valendo ressaltar a diferença que estabelece entre prosa e poesia, entre verso e a linguagem discursiva, entre a linguagem conotativa e a linguagem denotativa, coloquial ou científica. Diz: “ O verso – de medida regular ou não – é a base rítmica da estrutura do poema. Ocorre porém que nem todos os que usam o chamado verso livre são verdadeiros poetas, isto é, nem todos têm o instinto do ritmo da linguagem poética:  na maioria dos casos são simples prosadores que invadem a área da poesia, instaurando nesta o ritmo da prosa, que é apenas respiratório e gramatical.”

Crise da poesia?

Colocada pelo conferencista  como suposta, já que, citando Claudel, a poesia está em tudo, salvo nos maus poetas, logo se depreende que essa “crise” resulta de vários fatores externos à obra de arte, e como tal influenciadores em seu constante processo de renovação, de equilíbrio prioritário no desequilíbrio dos acontecimentos que lhe temperam a couraça para novos embates travados com o tempo. A clássica procura de adequação entre fundo e forma, persistente na elaboração de uma linguagem poética capaz de sentir o mundo como presença do homem, inscreve-se também entre os sintomas de crise, numa época tumultuosa em que “a poesia ficou impressa no livro, que continua a entrar discretamente pela porta da frente de nossas casas, ao passo que a imagem de televisão atravessa as próprias paredes”. (5)

Essa mesma crise da poesia, compreendida também como desgaste de sua “popularidade”, de sua  cobertura  crítica pelos meios de comunicação e de seu acesso ao leitor, foi posteriormente ressaltada pelo poeta Fernando Mendes Viana, em tom de súplica e socorro, no artigo intitulado “SOS para salvar a poesia” (Suplemento Literário de Minas Gerais de 05.12.70) e objeto de comentário assinado por nós (em 14.13.71). Fazíamos, ali, uma profissão de fé nos princípios eternos  que acionam o carro de Apolo, nessa corrida  milionária  com as ogivas espaciais. E dizíamos que apesar dos contrários ou por isso mesmo, a poesia é concebida nas origens, ou seja, que por impulso de mágicas ela devolve ao instrumento receptivo a limpidez objetiva de quem penetra numa cortina de chuva. As palavras subseqüentes são frutos dessa travessia incolor, transparente, e adquirem a extensão de um fogo que se grava nas árvores, e o ar das cinzas revoltas é o mesmo que brilha nas flores de maio. Os acontecimentos, as fábulas, o motejo, os crimes, as guerras, os encontros, as ruas, as pontes, os rios, as máquinas, o amor e a pedra, latejam no pólen do verso. Do verso verso ou da palavra verso, poema, feito para conter o sonho dos milênios. Não, não pode existir morte possível da poesia! Ela se nutre das partes mortas de todos os seus arredores, transfere-se de vaso, renasce, permanece. Daí o seu poder  de antecipação na descoberta dos velos misteriosos, e os atributos de vidente que se confere ao poeta. Os temas, por mais vulgares, se diluem e perenizam nos símbolos poéticos. Desse modo, a suposta crise da poesia decorre de um malentendido, a partir do momento em que os domínios do verso-pelo-verso receberam o impacto de novas estruturas, o sangue novo das pesquisas novas, o diálogo aberto com os outros campos do conhecimento,

Em suma, defendida como verso, representada como ideograma, processada como gesto de fazer algo equivalente a figuras ou construções geométricas, a poesia é condição primordial de existência decorrida na tranqüilidade que sobrevive ao caos para o cosmo, do eu particular para o  eu cósmico, do informe para o sublime, do sublime para o mágico. Quer seja palavra, verso ou meras representações estruturais, manipuladas ou “escritas”. Pois, em sessenta anos de Modernismo, uma coisa é certa: continuamos tão perto das primitivas inscrições rupestres, quanto o homem do Universo.

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