quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

O PROTESTO DE BOCAGE


O PROTESTO DE BOCAGE

Desde bem cedo, por entre versos eróticos, anedotas e fatos envolvendo os tempos históricos da monarquia portuguesa, que temos ouvido e repetido Bocage, ou simplesmente Bocaes para os biliosos garotos da rua Amazonas, margem do Iaco, naquela antiga Sena Madureira de altíssimas árvores de eucalipto. Chegamos, então, ao ponto de antever-lhe mentalmente a célebre figura que ele próprio descreve em seu conhecido auto-retrato poético, um soneto tantas vezes deturpado, como tantos outros de sua lavoura pornográfica, sempre e exatamente naquelas chaves onde o poeta se deixa seduzir pelo êxtase do apelo dos instrumentos genitais em plena atividade. Dizemos êxtase, porque sua época foi marcada a fundo pelo misticismo religioso, que logo desperta nas consciências libertárias um sentimento antípoda chamado na prática de anticlericalismo. Bocage sublimou-se na consagração de tal sentimento: foi lírico, dramático, romântico e pornográfico na exata medida que dava a seus dias os altos e baixos que Olavo Bilac nos revela, ao dedicar-lhe uma das curvas mais belas de sua ‘’Via Láctea’’.
Assim foi que, anos adiante, ao deitar nossos olhos no retrato do poeta, tivemos de imediato a impressão de que a entidade retratada já era, sem tirar nem por, um velho conhecido nosso. Esse retrato foi reproduzido, em cores, na revista Panorama de arte e turismo, editada em Lisboa, Portugal, lá pelos anos sessenta. A reprodução traz o seguinte texto-legenda: ‘’Retrato de meio-corpo, em miniatura admirável e muito minudente, do poeta Bocage, vestindo sobrecasaca verde-azeitona, pintado com fidelidade do vivo, em Lisboa, provavelmente ao redor de 1797, por Máximo Paulino dos Reis, em madeira de carvalho (altura 220 mm e largura 340 mm), de mogno, marginada exteriormente com pau-santo e interiormente com metal dourado e canelado. Este retrato, que os anos patinaram, é preciosíssimo em todos os seus aspectos e o documento mais valioso que se reporta à iconografia do poeta Bocage. Tendo sido oferecido por D. Luís ao Conde de Peniche, e muitos anos incorporado no arquivo da sua Casa, foi vendido em leilão no Rio de Janeiro em 1962, pertencendo atualmente ao Dr. Jorge Felner da Costa.’’
Ali estava, diante de mim, o herói de tantas aventuras perfeitas, mesmo daquelas em que a imaginação popular utiliza o recurso novelesco (ou fabulário) da esparrela, ou do feitiço voltado contra o feiticeiro. A título de charge, lembremos aqui o Bocage surpreendido pelos verdugos do rei, o Bocage jogador, o adivinho, o subversivo, oposto aos bons costumes, etc. Grande no gênio, de vida sempre irregular e acidentada, ele encarna ao mesmo tempo o artista mais completo depois de Camões. Boêmio incorrigível, nato, agitador de verdades ferinas, irreverente no acicate ao falso pudor clerical e anti-burguês por natureza, o entrave do anonimato imposto à sua poesia erótica, burlesca e satírica tem sido responsável pela pouca divulgação que dele se tem feito nos países de língua portuguesa. Sua única obra completa nesse gênero fora, salvo engano, editada em Paris na segunda metade do século dezenove, precedida de longa e minuciosa introdução. Mas, infelizmente, este livro deve ser raro entre nós. Quem o possui, se ainda o possui, guarda-o a sete chaves. Há vários anos tivemos um exemplar em nosso poder, copiamos o mínimo de suas páginas, esquecendo-nos, todavia, de extrair dele o importante depoimento de seus editores a respeito da vida e obra de Elmano, o o glorioso M. M. de Barbosa du Bocage, conforme se assinava.


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