segunda-feira, 31 de março de 2014

Destino



Destino


Um tear
e uma aranha
ponteiam meu destino.
Quando o tear se esgota,
a aranha pega o fio
e sobe.


A leitura deste signo
gasta-me o zodíaco.


sábado, 29 de março de 2014

Para L. Beethoven


Para L. Beethoven


Meu corpo entrego ao teu silêncio de água,
aos arcos de tua música pairante,
onde as vozes da terra, no seu pasto
de nuvens, resplandecem como lágrimas.


Não sinto mais feridas nem abalos.
Meu sangue jorra lento dos violinos.
E uma luz crucifica-me nos ares
de chuva, por tuas rosas lapidados.


Estas rosas que alteram nosso dia,
e abrem na tarde a súplica dos dedos
que se libertam, pássaros, do barro.


E tocam, com sua forma torturada,
a flor do azul contida e descontida
neste adágio de pedra e de luar.


quarta-feira, 26 de março de 2014

Soneto arqueológico


 Soneto arqueológico


Babilônio sutil, meu queixo fino
sobrevive às catástrofes; num vaso
posto a secar, meus olhos comparecem
entre os botões da noite milenária.

Sombras do Tigre, mágicas do Eufrates,
algo resta de nós. E disto apenas
tudo volta a crescer, tudo se extingue
feito o barro dos códigos severos.

Quem me decifra além dessas batalhas?
Quem me vê nos coleios da serpente?
Quem me furta do sono e me atropela?

Babilônio sutil, no auge da messe
cozinho para os reis pedras e telhas.
Nas horas vagas sou pastor de ovelhas.


domingo, 23 de março de 2014

Voragem


Voragem

Rostos que nunca vi, jacintos murchos
cujas sonatas frias me tocaram,
estes rostos não quero: eles são breves
no desfile das pálpebras cerradas.
Penso naqueles outros, familiares
rostos de toda a vida. Cataventos
da rua ainda sem nome, alagadiço
porão da infância, arpejos e trigais,
dai-me a ver novamente ou mesmo em sonho,
estes semblantes nunca repetidos,
graves alguns, mas todos inseridos
na memória dos dias voluntários.
Cemitério, talvez, dessas lembranças,
todas, em mim, são rosas e crianças.


quinta-feira, 20 de março de 2014

Restinga's Bar



 

Restinga's Bar


Sou tão frágil, meu bem, que um som, de leve
pode ser-me fatal como o teu beijo:
qualquer música brega, qualquer frase
pode ser-me fatal. E, assim, não deve
a brisa andar tão próxima à tormenta,
como não deve o ritmo da valsa
transformar-se em punhais; a vida é breve
e aquilo que é demais logo arrebenta.
Sou tão frágil, meu bem, que nada pode
separar-me de ti. Teu nome é um sonho
que navega em meu sonho. Tenho pena
de tudo, algo me aflige e me sacode.
Desliga esse Gardel, bota um canário
em vez do som, da voz que me condena.


terça-feira, 18 de março de 2014

Vênus


Vênus

Dá-me, Apeles, o sangue dos teus dedos
e as cores deste mar, espuma ardente
em que Vênus ressoa e se reparte
entre deuses e bichos, céus e terras,
para que a louve, prostituta imensa
feita de orgasmo e sol. Pombos e cisnes
a conduzem nos braços da Volúpia
onde ela exerce, pleno, o seu domínio.
Mas, de repente, queda-se cativa
de um mortal como Adônis. Tão completa
me parece esta deusa que seu brilho
tem, sobre nós, a calma perspectiva
de uma fúria saciada: um simples nome
que a eternidade rútila consome.


sábado, 15 de março de 2014

A POESIA ATRAVÉS DOS TEMPOS



CURSO DE ARTE POÉTICA
 



A POESIA ATRAVÉS DOS TEMPOS

POESIA
        


 Os povos indígenas contam seu mundo. Uma parte
dessa “literatura” dos primórdios da Amazônia acha-se
recolhida nas obras de Antônio Brandão de Amorim, Barbosa
Rodrigues, Elmano Stradeli, Nunes Pereira, Theodor Koch-
Grünberg e outros. A língua geral do Amazonas ou Nheengatu
(= nheen (língua), catu (bonito), falar bonito, orquestrada pelos
missionários jesuítas como primeiro passo da cataquese,
servira ao mesmo tempo para contornar a fechada barreira dos
falares e dialetos existentes na região, facilitando,
14

posteriormente, a coleta daquele material etnográfico: lendas,
costumes, puçangas, mistérios e testemunho. Saberiam, por
acaso, os cientistas que tesouro poético traziam para a cultura
do branco? Sobre este fato inusitado escreve Raul Bopp: “Os
nheengatus, colhidos genuinamente nas malocas do Alto
Urariquera e na região do Rio Negro, eram de uma
enternecedora simplicidade. Por exemplo: “Há muito, já, no
princípio do mundo, contam, desceu do céu uma moça, de
lindeza de rosto” etc. Ou então: “Nos tempos de
antigamente...” O tuxaua acreditava na sua origem cósmica
quando dizia: “Aquela estrela que me gotejou...” Nos diálogos
afetivos, usavam o diminutivo dos verbos: “estarzinho”,
“esperazinho”, “adoçazinho” etc. Para dar ênfase a certos
episódios, recorriam ao processo de repetição do vocábulo,
como “pula-pulavam”, “vira-virando” etc. “(Raul Bopp,
“Putirum”, ed. Leitura S.A, Rio, 1968).
            Língua postiça, importada, artificial e imposta, legou-
nos contudo, o nheengatu, a riqueza e a plasticidade de um
vocabulário singular, dentre o qual substantivos, adjetivos e
verbos que detém a fragrância, a tônica e o toque mágico na
fixação da paisagem e dos fenômenos que movem, e se movem,
em planos, emaranhados e acidentes geográficos de cada
pedaço habitado pelas diferentes nações, ou tribos autóctones.
Temos, assim, PANÃPANÃ (borboleta), CATUÌ (bonzinho), YÚRI
(água corrente), CUARI (buraquinho), YPIXUNA (água preta),
PURANGA (bonito), ANDIRÁ (morcego), etc. Dos verbos que
transmitem carinho, amizade, conforto e segurança:
ESTARZINHO, DORMEZINHO, fazer DOIZINHO, ADOÇAZINHO,
etc.; inclusive muitos outros, somente traduzíveis para qualquer
idioma mediante recursos estilísticos habilidosos.
           Com certa estilização no arranjo das linhas, que
passam da forma prosaica para versos e poemas,
transcrevemos, a seguir, as lendas Macuxi, do Rio Negro, e a
Uanana, do Alto Rio Negro. A “Elegia Tucano” é de nossa
autoria, inspirada recentemente na última curva, talvez, de
transição e decadência desse povo heróico.


quinta-feira, 13 de março de 2014

CURSO DE ARTE POÉTICA



CURSO DE ARTE POÉTICA
 



           Para reduzir incursões através de nossa própria
experiência no trato com a poesia, tomamos por empréstimo, na
parte eminentemente técnica deste trabalho, um pouco da
metodologia e dos textos da professora Nelly Novaes Coelho, de
Geir Campos, em seu “Pequeno Dicionário de Arte Poética”, e,
em, menor escala, do “Vocabulário de Poesia”, de Raul Xavier.
Numa visão panorâmica, como pesquisa, montagem e
contribuição pessoal, evitamos, nele, a ênfase preceptiva de
modelos e sugestões para análise de textos, visando antes
motivá-los como resposta ao que foi apreendido e aprendido, no
curso das “aulas”.
           Afinal de contas, tudo começou quando fomos
convidado a ministrar um Curso de Arte Poética a professores
do 2º Grau, no Instituto de Educação do Amazonas. Nem é
preciso dizer que os mestres-ouvintes, instigando e debatendo
até o osso, nos deram, após, a idéia deste livro.


A POESIA ATRAVÉS DOS TEMPOS

POESIA
          Inicialmente, cabe perguntar: como fazer poesia se
ela, a poesia, já existe independentemente da palavra e do
poema? Colocada nestes termos, a poesia se manifesta, no
homem, como necessidade de expressão e comunicação de
estados psicológicos, emoções, sentimentos, etc. As
sociedades agráfas, impregnadas de sentido místico e
sobrenatural, utilizavam recursos fonéticos, gestos, danças,
movimentos, rituais, inclusive a sonoridade por meio de
instrumentos de sopro e percussão, para transmitir e “guardar”
o seu mundo riquíssimo em tradição, poesia, ciência e
artesanato, dos quais se utilizavam, também, para as utilidades
domésticas.
           A poesia, nas sociedades tribais ou primitivas,
encontra sua mais alta forma de expressão através do lendário
e da mitologia que informa sobre o modo como surgiram,
incluindo-se, aí, a terra, os bichos, as águas, os homens, seus
deuses e seus heróis. Aliada ao sonho e á natureza de que se
alimentam as visões e a fantasia, ela traduz a sabença que intui
dos mistérios, dos valores e das grandezas físicas do Universo.
A linguagem é indireta ou metafórica, mas sua qualidade
poética reside, sobretudo, na adequação do linguajar da criança
ao senso de medida que empresta aos fatos narrados uma
situação mágica da própria realidade. Melhor explicando, as
noções convencionais de espaço e de tempo, peso e volume, se
anulam face ao imaginário acumulado e transmitido pelos
narradores de estórias. Os índios, assim, representam o pleno
exercício físico e vocal da poesia, antes da cultura e da palavra
escrita.
         


terça-feira, 11 de março de 2014

CARTAGO FUI EU


CARTAGO FUI EU


Canta um pássaro morto sobre o dia
que a muitos outros já se misturou:
algo abaixo dos ramos silencia,
treme a terra na pedra que restou.
Vem de que mares essa nostalgia
que meus ossos fenícios engessou?
De Cartago, talvez, da noite fria
transformada no pássaro que sou.
Esse canto noturno me extenua.
Vem de Cartago, sim; da negra lua
por dono o sol que abrasa, mas festeja.
Esplende a noite em látegos de urtiga.
Brinda-se à morte ao cálice da intriga.
Meu corpo, feito escombros, relampeja.



( Coral das Abelhas)


sábado, 8 de março de 2014

CURSO DE ARTE POÉTICA



CURSO DE ARTE POÉTICA
 

O propósito desta comunicação é demonstrar aos
interessados na Arte Poética como fora esta organizada, desde
as suas origens, chegando a formar um corpus de regras e
normas bem considerável. A exemplo do triolé, fácil de
improvisar. No todo, porém, a Arte Poética, hoje, está livre de
amarras. Livre até da Gramática que, segundo pensam os
mestres do ideograma chinês, só foi inventada para estragar a
poesia. Mas achamos, por fim, que se deve e se pode tirar
algum proveito daquilo que, por ser indispensável em qualquer
iniciação do gênero, ainda vale para todos os tempos.


terça-feira, 4 de março de 2014

CURSO DE ARTE POÉTICA


CURSO DE ARTE POÉTICA
 



           O cotidiano, abrigo de signos & objetos, processo de
todos os processos em qualquer baliza de entendimento,
construção e objetivo, ele tem, na poesia, a única linguagem
que torna possível a diversidade, impossível a comunicação e
permanente a expectativa. O cotidiano no campo, nas
montanhas, nas grutas, nas torres, nos ares, nos rios, nas
florestas, nos oceanos, nos pântanos, como este Mato Grosso
de Manoel de Barros, o cotidiano nas fábricas, nos velhos e nas
crianças, o cotidiano nos mortos. É preciso vê-lo, senti-lo e vive-
lo neste outro cotidiano - resumo de todos os demais cotidianos
- que está na arte do poeta. O cotidiano das normas, das regras
fixas e das terminologias que, logo logo, ao contato das
realidades em fluxo, se ampliam ou desaparecem na conquista
de novas formas e novas palavras. Ou de formas, volumes e
cores apenas, sem qualquer palavra.
           “Nos tempos dos aztecas, segundo crenças
religiosas, ao final de cada ciclo de cincoenta anos, a vida
antiga deveria ser destruída, pelo menos simbolicamente,
iniciando-se um novo ciclo. Isto implicava em que todos os
fogos fossem apagados, todos os utensílios domésticos
destruídos ou renovados” (L.S. Cressman, “Homem, Cultura e
Sociedade”, Ed. Fundo de Cultura, 1956) Tenhamos aí, portanto,
que os templos seriam as obras de arte construídas por todos
os membros da sociedade. Aos utensílios domésticos, como até
hoje se verifica entre os remanescentes íncolas do Alto Rio
Negro (Am), produtos de arte e artesanato, também se
incorporam formas e representações de fundo mítico. Nas
sociedades complexas do mundo atual, encontramos também
uma atmosfera de criatividade e saturação de mitos e símbolos,
que por sua vez se renovam. Mais do que nunca, o cotidiano
global é a Fênix da Poesia. Ele destrói e recompõe com tamanha
rapidez, que até dele nos esquecemos.



domingo, 2 de março de 2014

CURSO DE ARTE POÉTICA


CURSO DE ARTE POÉTICA

 Incursor e praticante de seu cotidiano, o poeta, este
cidadão libérrimo, se toca e se arrasa em traumas silentes,
envolto na fugacidade de uma existência criadora, mas vítima,
ao mesmo tempo, das grandes e pequenas tragédias que
montam a perspectiva e o absurdo do mundo contemporâneo. A
sensibilidade moral e a condição humana, norteiam seus
passos. Lírico ou épico, seu discurso traduz a lasca viva do
torvelinho, da mudança e da transformação. Sua linguagem
opera em todos os níveis, pois a linguagem poética está a uma
linha quase invisível daquilo que se denota. É a linha imaginária
que une os contrários diante da reflexão de um minuto, apenas.
Este leve tecido humaniza e dá um sentido às coisas. Este
sentido é poesia.
           Publica o Suplemento Literário de Minas Gerais, em
seu nº 1103, que Mário Quintana evita os entrevistadores,
“chatos perguntativos”, na sua opinião, para driblar perguntas e
assuntos poéticos. Ele prefere conversar amenidades, ou coisas
do cotidiano. Quintana, tido como o mais puro dos poetas, tira
de suas passadas habituais pela cidade de Porto Alegre, a cor, o
som, a palavra e o neologismo bem à maneira de seus poemas
instantâneos, até de suas vírgulas. Ao contrário de certos
colegas de ofício, que de tanto se confinarem em suas
bibliotecas mais parecem livros do que gente, esse poeta
gaúcho, estando agora numa fase de releitura do quanto lera e
vivera em toda sua vida, é, portanto, na vida e no mundo que ele
busca alimento para escrever. Seu coloquialismo retoca o
Inferno de Dante... (1988)
          Filósofos, cientistas e tecnocratas, ao cabo e ao fim
de suas lucubrações, deparam com a verdade na poesia. Todas
as aparências e projeções de fenômenos naturais ou
mecânicos, apesar de infletirem qualidades variadas,
dependendo do ângulo, da visão e do sentimento que observa,
nunca se repetem. A luz do sol, o reflexo das águas e tantas
outras “descargas” e toques subliminares, povoam nossos
dias. A noite apanha estes sonhos, e navega com eles. Como
seja a posição de cada um, nós tomamos desses objetos a
imagem real ou a imagem ideal. Esse gesto comum, aliado a
uma “estória” ou mesmo aos temas de nossa intimidade
doméstica, se exprime por várias outras imagens e metáforas
que às vezes se combinam de modo inconsciente. Essa imagem
ideal, que já existia, por exemplo, no projeto e no sonho do
artista antes da imagem real, é um dos componentes do nosso
cotidiano. Associada ao convívio afetivo, ela vai enriquecendo e
aprofundando as demais vivências que tivemos nas idas e
vindas em que tantos outros fatores - como o vento e as chuvas
- tiveram sua parte.

sábado, 1 de março de 2014

Curso de Arte Poética

 

Curso de Arte Poética

Jorge Tufic
Noções de cotidiano e sentimento poético

O exercício de qualquer modo poético ensina a ver e a sentir o nosso cotidiano não apenas como um território de batalhas pela sobrevivência material, mas, sobretudo, como veículo e atmosfera de emoções constantemente renovadas, surpresas e descobertas.

Sendo afetiva e universal, a poesia manifesta-se independentemente da vontade de cada um. O ser é parte dela. Esmagada ou esquecida em razão de interesses que parece contrariar, ainda assim, sob vários outros nomes e formas, ela penetra em tudo e em todos por magia de fenômenos pré-existentes ao raciocínio lógico.

A mente coletiva, presa aos estames da produção e do consumo, deixa passar em branco sequências, movimentos, figuras, paisagens e fatos que, de repente, dado o hábito que adquirimos de correr e “esfriar” os sentidos mais próximos do humano, são creditados ao mundo da fantasia. A exploração do homem pelo homem, a miséria ambulante e ambulatória, a infância abandonada, as casas em ruínas, o êxodo rural que amplia o latifúndio e abarrota os presídios, as colinas e os campos distantes, o abate indiscriminado de animais, a verde transparência dos bosques, a lenta agonia das árvores, o drama social dos que vivem expostos ao perigo e à morte, já se constituem em partes inseparáveis desse vasto painel que se divide, principalmente, entre a casa e o trabalho. Diante dele, porém, raro saímos de nossa concha para um voo mais extenso, capaz de avaliar as sutilezas que dançam entre o sólido e o volátil, entre o simples e o complexo.

Viver, dizia o campeiro ao praciano, todo mundo vive. Conviver, é que é. Extrapolando, portanto, da convivência entre pessoas, a convivência plena só pode ser alcançada quando vamos ao encontro dos “elos” e “qualisignos” do nosso cotidiano. É desse encontro, sem dúvida, que brota o sentimento poético. Nos passos da multidão enxergamos agora a caminhada do homem em seus diversos estágios de evolução e desenvolvimento. Nos olhares aflitos da criança e do cão que tentam atravessar uma rua, começamos também a refletir sobre os fracassos do nosso progresso. É que o homem, em última hipótese, já era dono de seu próprio caminho terrestre, antes do automóvel. O cotidiano é poético na medida exata de sua humanidade.

A mudança de época altera a pressão da linguagem, mas em nada modifica o “sentido primordial” e o “sentido profundo” do insight. A Forma Simples frustra o intento mais ousado das classificações literárias, e o “gesto verbal” recria a legenda. Segundo André Jolles, “para falar em termos de escolástica, pode-se dizer que a legenda contém, de modo virtual, o que existe na Vida de modo atual”. Considera Jolles, em seu livro famoso de 1930, as “formas simples” enraizadas na linguagem como “gestos verbais” elementares e que se originam de “disposições mentais” básicas do Homem em face do mundo e da vida. Dessas formas simples (que incluem a legenda, a saga, o mito, a adivinha, o ditado, o caso, o memorável, o conto e o chiste), analisa o autor a natureza, as características e as formas históricas de atualização, mostrando que delas derivam as formas literárias mais complexas: assim, por exemplo, o romance policial é a atualização da adivinha (“Formas Simples”, Ed. Cultrix, SP, 1976). O que houve afinal após tudo isso? Terá a industrialização contribuído para estancar as fontes genéticas do mito, a força da legenda ou as múltiplas vertentes do conto e da gesta? Ou novas “disposições mentais” vieram à tona com a trágica libertação do átomo para fins genocidas?

De qualquer modo, todo o “revestimento” da civilização e da cultura inclina-se para o estético. A perspectiva de tais conjuntos sugere o poético. Para exemplificar, não se pinta uma casa somente com o intuito de proteger o embuço de suas paredes. Nem se plantam jardins, com repuxos e estátuas, somente para exibir exemplares da flora e entidades míticas, ou religiosas. A urbanização, coroamento que instala, definitivamente, o homem em seu novo hábitat, sempre em luta desigual com as mazelas do progresso, empenha-se também no embelezamento e no repouso de linhas estáveis, tendo em vista o bem-estar público. Em teoria, contudo, o longo trajeto de soerguimento do homem tem um compromisso ainda longe, talvez, de ser realizado: o de levá-lo, com êxito, a um segundo paraíso, humanamente impossível enquanto prevalecerem as diferenças de classes.

Translado, rotina, jogo e clarividência, toda poesia é social. Incursor e praticante de seu cotidiano, o poeta, este cidadão libérrimo, se toca e se arrasa em traumas silentes, envolto na fugacidade de uma existência criadora, mas vítima, ao mesmo tempo, das grandes e pequenas tragédias que montam a perspectiva e o absurdo do mundo contemporâneo. A sensibilidade moral e a condição humana, norteiam seus passos. Lírico ou épico, seu discurso traduz a lasca viva do torvelinho, da mudança e da transformação. Sua linguagem opera em todos os níveis, pois a linguagem poética está a uma linha quase invisível daquilo que se denota. É a linha imaginária que une os contrários diante da reflexão de um minuto, apenas. Este leve tecido humaniza e dá um sentido às coisas. Este sentido é poesia.

Publica o Suplemento Literário de Minas Gerais, em seu nº 1103, que Mário Quintana evita os entrevistadores, “chatos perguntativos”, na sua opinião, para driblar perguntas e assuntos poéticos. Ele prefere conversar amenidades, ou coisas do cotidiano. Quintana, tido como o mais puro dos poetas, tira de suas passadas habituais pela cidade de Porto Alegre, a cor, o som, a palavra e o neologismo bem à maneira de seus poemas instantâneos, até de suas vírgulas. Ao contrário de certos colegas de ofício, que de tanto se confinarem em suas bibliotecas mais parecem livros do que gente, esse poeta gaúcho, estando agora numa fase de releitura do quanto lera e vivera em toda sua vida, é, portanto, na vida e no mundo que ele busca alimento para escrever. Seu coloquialismo retoca o Inferno de Dante... (1988)

Filósofos, cientistas e tecnocratas, ao cabo e ao fim de suas lucubrações, deparam com a verdade na poesia. Todas as aparências e projeções de fenômenos naturais ou mecânicos, apesar de infletirem qualidades variadas, dependendo do ângulo, da visão e do sentimento que observa, nunca se repetem. A luz do sol, o reflexo das águas e tantas outras “descargas” e toques subliminares, povoam nossos dias. A noite apanha estes sonhos, e navega com eles. Como seja a posição de cada um, nós tomamos desses objetos a imagem real ou a imagem ideal. Esse gesto comum, aliado a uma “estória” ou mesmo aos temas de nossa intimidade doméstica, se exprime por várias outras imagens e metáforas que às vezes se combinam de modo inconsciente. Essa imagem ideal, que já existia, por exemplo, no projeto e no sonho do artista antes da imagem real, é um dos componentes do nosso cotidiano. Associada ao convívio afetivo, ela vai enriquecendo e aprofundando as demais vivências que tivemos nas idas e vindas em que tantos outros fatores – como o vento e as chuvas – tiveram sua parte.

O cotidiano, abrigo de signos & objetos, processo de todos os processos em qualquer baliza de entendimento, construção e objetivo, ele tem, na poesia, a única linguagem que torna possível a diversidade, impossível a comunicação e permanente a expectativa. O cotidiano no campo, nas montanhas, nas grutas, nas torres, nos ares, nos rios, nas florestas, nos oceanos, nos pântanos, como este Mato Grosso de Manoel de Barros, o cotidiano nas fábricas, nos velhos e nas crianças, o cotidiano nos mortos. É preciso vê-lo, senti-lo e vivê-lo neste outro cotidiano – resumo de todos os demais cotidianos – que está na arte do poeta. O cotidiano das normas, das regras fixas e das terminologias que, logo logo, ao contato das realidades em fluxo, se ampliam ou desaparecem na conquista de novas formas e novas palavras. Ou de formas, volumes e cores apenas, sem qualquer palavra.

“Nos tempos dos aztecas, segundo crenças religiosas, ao final de cada ciclo de cincoenta anos, a vida antiga deveria ser destruída, pelo menos simbolicamente, iniciando-se um novo ciclo. Isto implicava em que todos os fogos fossem apagados, todos os utensílios domésticos destruídos ou renovados” (L. S. Cressman, “Homem, Cultura e Sociedade”, Ed. Fundo de Cultura, 1956). Tenhamos aí, portanto, que os templos seriam as obras de arte construídas por todos os membros da sociedade. Aos utensílios domésticos, como até hoje se verifica entre os remanescentes íncolas do Alto Rio Negro (AM), produtos de arte e artesanato, também se incorporam formas e representações de fundo mítico. Nas sociedades complexas do mundo atual, encontramos também uma atmosfera de criatividade e saturação de mitos e símbolos, que, por sua vez,  se renovam. Mais do que nunca, o cotidiano global é a Fênix da Poesia. Ele destrói e recompõe com tamanha rapidez, que até dele nos esquecemos.

O propósito desta comunicação é demonstrar aos interessados na Arte Poética como fora esta organizada, desde as suas origens, chegando a formar um corpus de regras e normas bem considerável. A exemplo do triolé, fácil de improvisar. No todo, porém, a Arte Poética, hoje, está livre de amarras. Livre até da Gramática que, segundo pensam os mestres do ideograma chinês, só foi inventada para estragar a poesia. Mas achamos, por fim, que se deve e se pode tirar algum proveito daquilo que, por ser indispensável em qualquer iniciação do gênero, ainda vale para todos os tempos.

Para reduzir incursões através de nossa própria experiência no trato com a poesia, tomamos por empréstimo, na parte eminentemente técnica deste trabalho, um pouco da metodologia e dos textos da professora Nelly Novaes Coelho, de Geir Campos, em seu “Pequeno Dicionário de Arte Poética”, e, em, menor escala, do “Vocabulário de Poesia”, de Raul Xavier. Numa visão panorâmica, como pesquisa, montagem e contribuição pessoal, evitamos, nele, a ênfase preceptiva de modelos e sugestões para análise de textos, visando antes motivá-los como resposta ao que foi apreendido e aprendido, no curso das “aulas”.

Afinal de contas, tudo começou quando fomos convidado a ministrar um Curso de Arte Poética a professores do 2º Grau, no Instituto de Educação do Amazonas. Nem é preciso dizer que os mestres-ouvintes, instigando e debatendo até o osso, nos deram, após, a idéia deste livro.