terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

A ESCRITA



A ESCRITA


Também eu, Arie Gelderblom,
já estive entre cartas:
espelhos ou vendavais?
Mas estas, as minhas,
só tiveram como resposta
cadeias de montanhas, rios,
tapetes que voavam
e a dura mudez daqueles lábios
que nunca souberam migrar
nem mesmo para Beirute,
Veneza, Cairo ou Sevilha.
Uma carta, todavia,
seja a tua ou a minha –
especialmente esta que aperto
contra todas as dúvidas
para levá-la ao Correio,
eis que logo se perde ou se transforma:
ela rompe seu lacre e
mostra-se por dentro,
escultura oca ou peito vazio;
este risco pálido das letras
numa dança de insetos, nuvens,
garrafas submersas e: por quê não?
tua imagem, teus raios luminosos
que giram desiguais, murcham,
fazem cair (entre parêntesis)
toda e qualquer possibilidade
de lettera, brief, maktub,
ou, apenas, de uma ingênua
troca de selos?



terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

O MASSACRE DA PRAIA



O MASSACRE DA PRAIA

Apenas o que está impresso
ganha relevo sob as asas do abutre
que rege este dia.
Todos os habitantes da cidade
nos deixaram esse monstro:
um fim-de-semana deserto,
uma composição arbitrária de musgo,
telhados ocres, ruas
como serpentes digerindo
a ferrugem e o enxofre azedo dos
depósitos vigiados pelo olho frígido
que nos segue, e mata.
Apenas um texto que se repete,
confirma os alicerces da manhã.
O amor é negado.
Tornam-se inúteis e vagas
as estruturas de aço e concreto,
espaços de lazer, terraços de há muito
tomados somente
pelo fantasma da poeira.
Nunca se pôde evitá-lo:
diminuta centelha de urânio
implode o nexo evasivo
 entre a praia silenciosa e a urbe
sedenta de privilégios.
Eliminam-se os irmãos,
enterram-se vivos os primos,
liba-se o vinho nos crânios pulsantes,
reviram-se as malas, consagra-se o
martírio em nome dos ratos 
da terra que se move, arenosa,
da reza que voa.
Para onde, Senhor?

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

ANTENA CÓSMICA



ANTENA CÓSMICA


Pouco importa o momento perdido,
a seta fora do alvo,
as asas do pássaro em viagem
para além do infinito.
Pouco importa a balada
que anoitece nas águas do rio,
o ciclo amargo das uvas e o
canto do galo nas
rosas do amanhecer.
As telas de um sonho
que injeto em minhas veias,
só me trazem o desespero
com a vigília dos signos.