UMA SIMPLES APRESENTAÇÃO
JORGE TUFIC
Escrever sobre o poeta Alencar e Silva, sobretudo quando o tema recai
nos sonetos reunidos neste volume, somatório de uma vida inteira dedicada à
poesia, antes de ser uma tarefa que nos empolga, é um dever que nos desarma
diante de tantas facetas de sua vida e de seus múltiplos recursos de escritor
preocupado em fixar pormenores da história cultural da geração madrugada, de
cujos primórdios datam as primeiras estrofes de sua pena versátil.
Ainda jovem, em Manaus, escrevia e publicava sonetos, poemas, artigos e
crônicas nos matutinos e vespertinos de maior circulação, inclusive na revista
de Anísio Mello, ¨Amazonas Ilustrado¨, de 1952, ano este que marca sua estréia
na poesia, com o livro ¨Painéis¨. Em 1951 participou de uma caravana de poetas
que demandara o sul, sudeste e extremo-sul do País, com paradas obrigatórias no
Rio de Janeiro e São Paulo, estando esse grupo constituído pelos seus amigos de
então e de sempre Farias de Carvalho, Antísthenes Pinto e Jorge Tufic. Numa
segunda viagem dessa caravana, passaria a integrá-la o inesquecível Guimarães
de Paula. Segundo historiadores, estas duas incursões dos ¨caravaneiros¨,
também chamados de ¨monges¨, se inscrevem nos antecedentes do movimento
madrugada, surgido em 1954, ou seja, um ano após seu retorno definitivo a
Manaus, em cuja praça do Pina deu-se o encontro da geração que tomaria seu
nome: a ¨geração madrugada¨.
Um raro depoimento sobre Alencar e Silva é de Arimathéa Cavalcante,
completamente avesso a qualquer manifestação desse tipo. Segundo esse mestre,
também poeta e dos bons, ¨ALENCAR E SILVA é um Midas admirável. Moderno. Tem o
Dom mágico de transformar, não no ouro que não tem importância para ele, mas em
poesia tudo aquilo que toca. Respira poesia, e é dela que o mundo de hoje mais precisa,
porque sendo mescla de prazer e dor, é sobretudo natureza, amor, vida, é Deus
que vem para dar um novo alento ao mundo em rotação¨(¨Território Noturno¨,
Coleção Madrugada, 2003). Para Max Carphentier, no prefácio de ¨Noturno Após o
Mar¨, livro de crônicas e poemas em prosa do autor deste livro, ¨Alencar e
Silva pertence a essa corporação restrita de reveladores-salvadores do
divino-humano, dos que, esperançosamente sós, se fortaleceram e se consumaram,
e se aceitaram majestosamente tristes, sabiamente sombrios, numa estratégia
apostolar milimetrada, para poderem preparar, a partir mesmo do cerco das
sombras, a hora da alegria.¨
Acha-se também, e com justiça, incluído na antologia de André Seffrin,
¨Roteiro da Poesia Brasileira¨- ANOS 50, Global Editora, SP, 2007, sob a
direção de Edla van Steen,- parte de uma série que trata das raízes até o ano
2000, um instrumento auxiliar e da maior valia para o estudo das fases e dos
processos criativos de nossa literatura. ¨Os anos 50 foram dos períodos mais
férteis da poesia brasileira do século XX ¨ Tempo de grandes aventuras formais,
suplementos literários, debates, performances. Fazendo coro às mudanças e
inovações, Alencar e Silva foi um dos teóricos da ¨poesia de muro¨, apoiada
pelo Clube da Madrugada e outras correntes estéticas que fizeram história.
¨Poesia Reunida¨é de 1987, com três livros, apenas, de sua laboriosa
oficina, editados entre 1965 e 1986. Apresentando-a, discursa o poeta e
cronista L. Ruas, de saudosa memória: ¨Gostaríamos apenas de dizer que Alencar
e Silva comprova, na edição desta obra conjunta, que permanece fiel a si mesmo,
o que equivale dizer que permanece fiel à sua singular vocação poética¨. E
Elson Farias, no prefácio à primeira edição de ¨Lunamarga¨, não deixa por
menos: ¨O livro que temos em mãos, além do timbre pessoal característico da
expressão autêntica, traz as melhores qualidades da atual poética brasileira:
profundidade mítica, angústia, a palavra existindo livre dos luxos supérfluos e
do comum, dolorosamente sofrida e recriada no espaço vital do seu mundo.¨ A
fortuna crítica tonteia pelas celebridades: José Alcides Pinto, Ramayana de
Chevalier, Arthur Engrácio, Antísthenes Pinto, Genesino Braga, Guimarãs de
Paula, Anísio Mello...
Na qualidade de homem público e braço de Governo, sobressai-se como Diretor-Presidente da Imprensa Oficial
do Estado, fazendo editar o Suplemento Literário Amazonas, que circula de
novembro de 1986 a outubro de 1988. Nada disso por conta do Estado, senão
através de um acordo feito junto aos assinantes do Diário Oficial, com alguns
centavos a mais nas respectivas assinaturas. Foram, na verdade, vinte e quatro
edições e uma distribuição nunca vista antes por toda a América do Sul. Além
disso, pagavam-se as colaborações selecionadas pela Comissão Editorial e a
ninguém, que eu saiba, negara-se acolhida em suas páginas abertas, quer para
todos os amazonenses, quer para escritores de outros Estados brasileiros. Por
falta de maiores aproximações ou tempo para isso, valeu-se o Diretor-Presidente
daqueles companheiros do Clube da Madrugada que aparecem no expediente, sem,
contudo, discriminar ou cercar a iniciativa de normas ou preconceitos temáticos
ou lingüísticos, muito menos grupais ou pessoais. Em tão pouco tempo à frente
do órgão, nem por isso deixara, também, de apor o seu visto favorável à
publicação de obras importantes da literatura amazônica.
Assis Brasil, no volume ¨A Poesia Amazonense no Século XX¨, relembra que
¨Astrid Cabral haveria de destacar o veio romântico e ¨o equilíbrio clássico¨
da poesia de Alencar e Silva, toda vazada em ¨dicção despojada e serena¨.
Enfim, ¨amazonense e brasileiro por circunstâncias biográficas, podendo
aplicar-se a Alencar e Silva a verdade pessoana: sua pátria é a língua
portuguesa¨. E vai mais longe na pesquisa a que sabe imprimir o calor da
descoberta: ¨Escrevendo desde adolescente, entre poemas e primeiros livros
publicados, ativa colaboração nos jornais de Manaus, A Tarde, de Aristóphano
Antony, e A Crítica, de Umberto Calderaro Filho. O jornalismo literário foi
feito em O Jornal, onde o Clube da Madrugada mantinha um importante suplemento
e no Jornal-Cultura, da Fundação Cultural do Amazonas, de que foi secretário e
editor¨. Digressões necessárias, já que o nosso Alencar é, antes do mais ou do
menos, poeta. Um poeta universal desde que nascera, e mais que universal,
cósmico, já que até mesmo o ponto geográfico de seu nascimento, em Fonte
Boa-AM, as enchentes cíclicas arrastaram para o oceano atlântico.
Mas foi o professor e crítico Arimathéa Cavalcanti, o autor que melhor
estudara o poeta no livro citado linhas atrás, estudo esse o qual, pela
extensão e planejamento, tem-nos encaminhado para uma compreensão global de sua
obra poética. Deste modo, esclarece: ¨PUDE agora ultimar a análise, sem caráter
definitivo, mas de modesta contribuição, na certeza de uma verdade
insofismável: a obra enriquece espiritualmente a quem quer que a folheie. Pois
o livro – Território Noturno, de Alencar e Silva, propõe amplas reflexões, eis
que abrange aquelas regiões oníricas onde nem sempre mergulham escafandristas
neófitos, na tentativa de desvendar-lhe quando não o hermetismo, pelo menos a
aura de enigma criada pelos símbolos, ajudados do próprio autor, em comparações
e confrontos textuais¨. Ressalta o lírico, percebe vagamente a presença de um
neo-misticismo em algumas de suas escritas, dando-nos, afinal, uma investigação
crítica dificilmente encontrada em monografias da espécie.
Poeta maior, escritor extensivo aos mais difíceis gêneros literários,
memorialista que faz a história de sua geração e do Clube da Madrugada, Alencar
e Silva conta com os seguintes livros publicados, entre prosa e poesia:
¨Painéis¨, poesia, 1952, ¨Lunamarga¨, poesia, 1965, ¨Território Noturno¨,
poesia, 1982, ¨Sob Vésper¨, poesia, 1986, ¨Poesia Reunida¨, 1987, ¨Noturno Após
o Mar¨ (crônicas e poemas em prosa), 1988, ¨Sob o Sol de Deus¨, poesia, 1992,
¨Ouro, Incenso e Mirra¨ (poema em cinco segmentos e cinqüenta sonetos), l994,
¨Solo do Outono¨, poesia, 2000, ¨Jorge Tufic: As Tendas do Caminho¨, ensaio,
2004, ¨Crepuscularium¨, poesia, 2006. A sair, tem o Autor os seguintes títulos:
¨Prosa Vária¨, ensaios, e ¨Poetas e Figuras na Paisagem¨, ensaios. Entretanto,
como um de seus velhos companheiros, sou testemunha das inumeráveis ocasiões em
que a Musa lhe dera aquele sopro extra para compor sonetos e poemas, satíricos
ou não, com o único objetivo de exercitar as falanges, expor deformidades ou
tirar-nos de certos apertos em nossos caminhos pelo mundo. Um fato no mínimo
grandioso, ocorrido em São Paulo (1951), ao ensejo da visita que fazíamos à
sede da Prudência e Capitalização, na tentativa
de obtermos apoio às nossas viagens de Caravaneiros da Cultura, foi
Ramayana de Chevalier, secretário particular de Adalberto Vale, Superintendente
da empresa seguradora, quem nos sugeriu
a idéia de formularmos o pedido que tínhamos a fazer, através de um
soneto. Sem demora, Alencar e Silva
tomou a si o desafio, redigiu, com a maior tranqüilidade, os quatorze versos
solicitados, e, assim, com este ¨passaporte¨ , oficializamos palestras e
contatos em Curitiba, Florianópolis e Porto Alegre.
A obra de que estamos nos ocupando, reúne todos ou quase todos os
sonetos do autor, recolhidos das páginas de oito títulos, com mais alguns
avulsos, sem falar nos improvisos ou nas circunstâncias poéticas ou de foro
íntimo. Sem falar, também, nos rejeitos que vamos deixando nas cestas do lixo,
nem sempre merecedores desse trágico destino. Egresso do rigor parnasiano, do
neo-simbolismo e dos versos livres que trazíamos conosco do sul do País, a
estrutura do soneto alencarino é simples, funcional e profundamente sugestiva,
quando retarda ou deixa ao leitor a fruição
da beleza e da verdade. ¨Quero enxuto o meu verso e muito simples¨ Em ¨O
Soneto no Amazonas¨ (pag. 22), eu destaco esse verso de um soneto de
¨Lunamarga¨ como exemplo de ¨linhas calmas e transparentes, despojado de
lugares-comuns e dos artifícios postos em prática, na ânsia de inovação, por certos autores da corrente
futurista¨.
Já é hora, contudo, de entregar ao leitor este livro do poeta,
representativo, como se verá, de uma de suas paixões literárias, talvez a
maior, que é a arte do soneto. Mas Alencar e Silva é poeta em qualquer
situação, gênero ou categoria. Um belíssimo poema ele carrega, também, no afeto e na convivência humana, de que nunca,
jamais, enquanto vivermos, podemos nos esquecer.
Jorge Tufic