sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

O PROTESTO DE BOCAGE


O PROTESTO DE BOCAGE

Sobrepaira, deste modo, uma espécie de dúvida, cercada também de mistério, quanto ao último e verdadeiro soneto de Bocage, já que, dentre tantos referentes ao nada de sua constante metafísica, dois se nos deparam tão idênticos na forma quanto opostos no conteúdo ideológico. O primeiro, muito mais difundido, para provar que ele não foi ateu, ou pelo menos converteu-se na hora da agonia, atribui-se com freqüência sua autoria a um frade que cultivara o bom gosto de imitar o estilo do poeta. Este soneto aparece publicado com uma observação de que fora ditado nas proximidades da morte ao Sr. Francisco de Paula Cardoso de Almeida, morgado de Assentiz, consoante depoimento de Guerreiro Murta, etc. O segundo, das Eróticas, não deixa a menor dúvida de ter sido escrito por Bocage. O primeiro deles é este:

Já Bocage não sou: à cova escura
Meu estro vai parar desfeito em vento ...
Eu aos céus ultrajei! O meu tormento
Leve me torne sempre a terra dura.
Conheço agora já quão vã figura
Em prosa e verso fez meu louco intento.
Musa... Tivera algum merecimento
Se um raio da razão seguisse pura!
Eu me arrependo; a língua quase fria
Brade em alto pregão à mocidade,
Que atrás do som fantástico corria:
Outro Aretino fui... a santidade
Manchei! ...Oh! Se me creste, gente impia,
Rasga meus versos, crê na eternidade.



O segundo é este:

Lá quando em mim perder a humanidade
Mais um daqueles, que não fazem falta,
Verbi-gratia - o teólogo, o peralta,
Algum duque ou marquês, ou conde, ou frade:
Não quero funeral comunidade
Que engrole sub venites em voz alta;
Pingados gatarrões, gente de malta,
Eu também vos dispenso a caridade:
Mas quando ferrugenta enxada edosa
Sepulcro me cavar em ermo outeiro,
Lavre-me este epitáfio mão piedosa:
Aqui dorme Bocage, o putanheiro;
Passou vida folgada e milagrosa;
Comeu, bebeu, fodeu sem ter dinheiro.





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