terça-feira, 31 de janeiro de 2012

QUANDO AS NOITES VOAVAM





III

numa certa altura da viagem,
os dessana resolveram dividir a humanidade
em tribos e falares diferentes.


Por último, veio a língua dos brancos.


Aí, então, eles fizeram um rito
com cigarro e ipadu.


desse rito nasceram as araras
e outras aves de penas coloridas.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

SONETOS PARA DUAS ARROCOLAGENS DE AFONSO ÁVILA

SONETOS PARA DUAS ARROCOLAGENS
DE AFONSO ÁVILA

            I

Quatro tempos colunas arcos setas
gastos remédios tempos digeridos,
mais corações de cera amor presente
no solo enfermo de bolor, e rouco.

Estes poderes tem a vice morte
ausência dos que amaram rebentados
como lágrimas cravos boca muda
pulso colado à terra de outras iras.

O terceiro remédio é a ingratidão,
mal desferido áspero de afeto,
luz contrária ao teu grito: corpo teu.

Quarta vitória paga o seu tributo,
pedras modelam trevas salto o novo
do muro que sucede ao sol barroco.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

QUANDO AS NOITES VOAVAM


no lugar deste mundo
as trevas cobriam tudo.
enquanto a mulher se criava,
mascou ipadu e fumou cigarro mágico.
Todas as coisas pulsavam
mas nada existia, senão
bancos, suportes de panela,
cuias, maniva, ipadu e cigarros.
destas coisas formou-se a mulher.
enfeites, casas e trovões
trabalhavam e dormiam no escuro.

Uma cobra-gigante-canoa
recolhera os trovões de suas tocas,
enquanto, à beira desse lago,
surgira a humanidade.


A Canoa Transformadora dos dessana
plantava e numerava.


Fincadas ao chão como pedras caídas do espaço,
ali estavam as raízes da mandioca
no desenho dos rios.

sábado, 21 de janeiro de 2012

DO DUETO

SONETO DA REINICIAÇÃO

                                   Ao poeta Majela Colares

Deixa arder crepitante a escassa lenha
do tempo que te rouba a mocidade;
num cálice onde a chuva se detenha,
bebe o teu dia com simplicidade.

Em qualquer diminuta claridade,
em qualquer gesto, aroma, em tudo venha
o sorriso  de Deus, profundidade
que além do pó tua máscara desenha.

Tótens e mitos planta em tua casa,
grava os sonhos de Blake; a letra abrasa
sobre a nuvem do mármore cativo.

Rastreia o sol dos incas. Bem, agora
degusta o milho cósmico da hora,
do grande enlevo de sentir-se vivo.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

SONETO À PASTA DO NEÓFITO


SONETO À PASTA DO NEÓFITO

De um calhamaço roto fiz a lira
que alguém furtara, sim, por brincadeira.
Era uma pasta azul, não de primeira
mas tinha um verso que de lá sumira.
Ou terá sido uma impressão ligeira,
miragem neutra do contexto, a lira,
sorte de amparo ao todo que delira
longe daquela, a lira verdadeira?
Este verso, contudo, eu persegui
vida afora, onde fosse, onde parasse,
do grão de areia ao súbito fru-li.
E quanto mais essa procura amasse,
mais distante era o verso, embora aqui
seu brilho, de repente, mergulhasse.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

SONETO DA PARTILHA


(Gravura de Picasso)

SONETO DA PARTILHA



Sonhei por um caminho, igual à trilha

que leva de um regato a outro regato;

e assim, me alçando vôo, no mesmo ato

revi meus pais, que triste maravilha!



Ambos em teto pobre: mesa e bilha

do tempo de meus acres só de mato,

mas de rifles também, para que exato

fosse o revide em caso de partilha.



De um sonho fui a outro e deste ao sonho

de que estava acordado; e vi-me fora

quando o circo tornara-se enfadonho.



Ainda vago, porém. A cada hora

de uma parte de mim logo disponho,

enquanto a que desperta, vai-se embora.

sábado, 14 de janeiro de 2012

DUETO PARA SOPRO E CORDA

SONETO A RICARDO REIS

Não por teu verso fluido e transparente,
Nem pelos deuses a quem sombra calma
Deste, lembrando a suave permanência
Do que puro inda resta onde não somos.

Mas ao prazer deixado ali freqüente
Em ler-te, aberto o livro e aberta a alma,
Todo um orbe revelas na existência
De um sorriso que em mármore supomos.

Pelas horas de humano entendimento
Em que dos tempos idos a beleza
Converges para um tempo começado;

E de, sendo tão parcos, um momento
Crer-se que o bem maior, glória ou riqueza,
Nada fica além disto que há sonhado.


quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

A paisagem do instante na poesia de Jorge Tufic

A paisagem do instante na poesia de Jorge Tufic
O livro Dueto para sopro e corda (Edições do autor, Fortaleza, 2000) do poeta Jorge Tufic, acreano de origem árabe e atualmente radicado no Ceará, para além de qualquer maniqueísmo reduzicionista, se apresenta como uma feliz síntese entre o tempo e o espaço numa nítida celebração ao fugaz, ao inapreensível, em consonância com aquilo que Drummond dizia ao antológico poema “Memória”: Mas as coisas findas/muito mais que lindas/essas ficarão.
        A obra constituída em três partes, denominadas de: sonetos, poemas e retrospectiva, vai desde adoção do soneto, demonstrando uma excelente domínio das formas fixas e das rimas quer sejam perfeitas toantes ou mesmo versos brancos, até um certo experimentalismo vanguardista, meio que pós-concreto e de um tom aproximado da poesia visual.
        Todavia, a tensão, digamos que fulcral do livro, e acionada entre os lócus, eleito e evocado pelo escritor, constituído de miudezas de brevidades, no qual acendra-se o olhar na descoberta do óbvio, para usar uma acepção cara a Darci Ribeiro, em cujo corpo a sutileza e rompe aferindo o caráter literário, epifânico.Como uma “frágil manhã que os pássaros celebram/e só dura o instante de uma estrela”.No qual a imagem preside a competência de fazer poético, em contraposição a um cronos curvado à desesperada perspectiva de finitude a qual, faz-nos ainda mais precários, de modo que a poesia funciona com a cristalização do efêmero, para, por conseguinte, tornamo-nos eternos, ainda que no mínimo espaço interacional da leitura. Sangrando-o mesmo no cerne de sua graça, como nestes versos: “Que somos nós? Tutores desses ventos/breve fulgor, insólito perfume./ Celebrar  esse instante era costume/ sob as copas de bosques sumarentos (...)”
        O próprio título do livro, a nosso ver, já emblematiza essa conjugação entre o infinito e o fugaz. O sopro, remete à vida, a fábula judaico-cristã da criação diz que a vida surgiu do fôlego, a partir do qual o homem formou-se em espírito vivificante. Já o ponteado das cordas, bem propício às ambiências transitoriamente boêmias, ainda segundo nossa percepção de todo impressionista, referencializa o finito, a taça esvaziada na madrugada, a noite refém dos dias. E é, justamente, o milagre da poesia, transmudada em música, que instaura a trapaça a estas sentenças. De maneira que podíamos ainda estabelecer com o signo ‘corda’ um relação de leitura da intertextualidade instaurada na obra. O autor como que evoca várias vozes de autores diversos, para, dialogicamente construir sua ária de resistência e celebração e também orbita no terreno da transterritorialidade da arte, assimilando da pintura, da música, e de outros espaços de manifestação artística, referências que visam engrandecer seu texto lírico. Isto fica evidente, também, nos paratextos, epígrafes, dedicatórias e evocações mesmo como nos poemas: “Soneto a Ricardo Reis”. “Sonetos para duas barrocolagens de Afonso Ávila”, “Soneto-Introdução à grande natureza morta metafísica, de Giorgio Morandi”, “Soneto para Marcel Proust”, etc.
        Na poesia de Jorge Tufic o “perene” é obtido pela própria provisoriedade dos eventos: “Porque te abres apenas rubra messe,/frágil manhã que os pássaros celebram,/e só duras o instante de uma estrela.” No primeiro terceto do texto “Soneto para um velho telhado”, se flagram, novamente, o “palco” e o “pouco” abrigados na sensualidade da palavra, advinda da cúmplice sinfonia entre a paisagem e o tempo: “Enquanto ossadas limpam-se da mesa,/ secam lá fora os grilos da incerteza/ telhados ardem na paisagem suja”.
        A última parte do livro, intitulada de “retrospectiva” é arregimentada nas possibilidades estéticas do concretismo e de algumas incursões vanguardistas experimentais e sedimentado, sobretudo naquela perspectiva minimalista herdada do primeiro modernismo brasileiro que teve como principal representante o poeta Oswald de Andrade, donde abundam o coloquialismo, o poema piada. Aqui no poema “Menino Grande” temos grande semelhança com também outro modernista o pernambucano Ascenso Ferreira, senão vejamos: “- Eu quero uma varanda/ uma rede/ um sabiá/ - E o que mais?/ deixa eu pensar.”
        Entretanto, a primeira parte pareceu-nos mais vigorosa, o poeta se mostrou muito mais senhor de seu ofício, muito mais à vontade para até ser subverter e inovar, ainda que dialeticamente, nos moldes da tradição do que no texto de viés, estritamente, renovador, modernista. Ou seja, admite-se aqui como sentença estética aquilo que disse Augusto dos Anjos: “A antítese do novo e do obsoleto/ tudo contribui para o homem ser completo”.

                                                                                 Astier Basílio

domingo, 8 de janeiro de 2012

SONETO REVISTO

SONETO REVISTO

Do espelho à flor extinta que te ampara
- amanhecida paz, silente rosa –
saltam meus olhos neste ver de agora
por dentro do silêncio e da miragem.

A forma branca de que nasce o dia
pressente a noite com seus astros novos;
vésper acode, assume a claridade
sobre a face de sono que a ilumina.

Fulgor do que se move e se transmuda
ao vislumbre de um cósmico dilúvio,
és o princípio, o frêmito corpóreo.

Porque te abres apenas rubra messe,
frágil manhã que os pássaros celebram
- e só duras o instante de uma estrela.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

SERESTA FRUGAL


SERESTA FRUGAL


Bota a mesa, Raquel. Aí vem a lua

pela janela aberta. A lua traz

constelações de frutas, muita paz

na brancura do pão que ora flutua.



Belos peixes do rio vão pra rua

da noite plena que esse bem nos faz.

Bota os pratos, que agora a mesa é tua,

farta desse clarão que satisfaz.



Lá fora o vento morno impõe o riso

de quem  degusta estrelas; e há licores

na sombra onde comer não é preciso.



Banquete assim, Raquel, preda os rancores,

enfuna o linho à mesa, engana o juízo

que assim volteia como os beija-flores.


terça-feira, 3 de janeiro de 2012

QUANDO AS NOITES VOAVAM




34 – Jorge Tufic
I
no lugar deste mundo
as trevas cobriam tudo.
enquanto a mulher se criava,
mascou ipadu e fumou cigarro mágico.
Todas as coisas pulsavam
mas nada existia, senão
bancos, suportes de panela,
cuias, maniva, ipadu e cigarros.
destas coisas formou-se a mulher.
enfeites, casas e trovões
trabalhavam e dormiam no escuro.

A saudade é como a luz, não morre

Uma carta de Ramayana de Chevalier


http://catadordepapeis.blogspot.com/2012/01/uma-carta-de-ramayana-de-chevalier.html






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Ramayana de Chevalier, 1958
Rio, 9 de abril de 1967
Meu grandiquerido [Jorge] Tufic

A saudade é como a luz, não morre, todos os dias se renova. Vocês do Clube da Madrugada representam, para mim, um retrocesso no tempo, uma viagem amável ao País da Emilia. Poetas, o são como eu aspiro e sinto: vivos, aluando de vida, tontos de luz como os pássaros livres da nossa terra. Gostaria de viver com vocês. Já me distancio na eclética do destino, procurando rosas no meu deserto, mas amando ao Amazonas com todas as fibras da minha paixão.

Nos meus dias de solitude, diante desta Copacabana sofrida pelos cortes de luz recebo sempre dois pedaços do Clube da Madrugada: Antísthenes e Penafort. Poetas, romancistas, talentos de cepa fina, caboclos na mais larga acepção do vocábulo. Trazem-me notícias, livros, composições espirituais da planície. São vozes da floresta, rumos perdidos da selva nesta flumilândia de arranha-céus.

Fala-me de você, de sua casa admirável debruçada sobre o igarapé como a de Pearl Buck em Hong Kong, talhada em madeira de lei, nossas eternas madeiras amazônicas, magníficas perfeições da nossa arquitetura neolítica, olhando as águas como presentes de Deus as almas sequiosas de bondade. Lembro-me de soneto, “Possível Soneto a Dalva”, obra prima da cinzeladura glebária, notável conquista de um talento que representa a nossa raça, a nossa gente, o nosso futuro misturando sírios, franceses, nórdicos, mestiços no imenso caldeirão da Hiléia, mãe santíssima da nossa desventurada sensibilidade. “O resto é uma cidade e nela o meu orgulho”.
Sim, o teu e o de todos esses Farias, Elsons, Bacelares, Américos, Alencares, Ruas e ensaístas como Aluísio Sampaio, Engrácio, Batista, João Bosco Evangelista, um economista como Saul Benchimol, um Jefferson Péres, artistas ao jeito de Afrânio Castro, Getulio Alho, Álvaro Páscoa, Moacir Andrade, Assayag, um ficcionista como Benjamin Sanches, e o miniaturista admirável que é Óscar Ramos, exilado na Espanha dentro da luz e da cor.

E me recordo dessas noites de luar sobre o rio, onde, quando em Manaus, “o fogo brando como Dalva em meu peito, a consumia”. Tu, como um Alfonsus de Guimarães, que assinaria esse soneto a Dalva, namorando uma lua no céu e outra lua no rio, momento eterno de translumbramento, como as genialidades pictóricas desses artistas manauaras ou transplantados para lá, doces Messias da última mensagem, amando desmesuradamente ao Amazonas, frutos de seus esgalhos pendentes, flores dos seus lagos imaturos, nelumbos dos seus igapós dormentes.

Gostei de teus livros, amei os teus poemas. Silvei como as dobras da espessura, buscando imagens e belezas. Arfei como os fatigados manatins dos canaranais, respirando saudades. O capitalismo afastou-me das rotas distantes, impossibilita-me uma visita à minha terra. Há uma pousada a minha disposição. A casa de Stenio Neves, na praça da Saudade, que me foi oferecida, com o ar condicionado e outras vantagens modernas. Um dia saltarei por ai, de acangatara, ou só com a minha velha tara, rosnando de amor pelo Amazonas, que me atormenta de paixão como um eczema sentimental.

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Anúncio em A Tarde, 1939
Morrerei, Tufic, é o destino. Só me sentirei feliz se o Clube da Madrugada, coletando-me as cinzas, junto com flores de mamorana, descer, uma noite de plenilúnio o rio Negro, despejando-me os espólios na foz, rumo ao mar-oceano... Nessas pedras que andei, hoje asfalto, por essas casas humildes que me convidam ao sonho impossível para os que não poderão jamais compreendê-la.
Vou parar. Meu caminho é como o das lagartas volantes, não marca o chão. Tu, que tens na lama a vibração das palmeiras dos oásis e o fervor pelo destino dos pais, tu que és símbolo do bom filho, do bom irmão e do bom companheiro, tu que és poeta no ar que respiras e na limpidez aos teus momentos interiores, nos quais festejas a Morte, lembra-te do teu velho amigo, do Ramayana que é uma expressão da Amazônia onde quer que se encontre, um traço de Amor entre a terra e o infinitivo, um caboclo doente e triste, cujo sorriso é uma lua à superfície de um lago tranquilo.

Abraço-te a ti e aos nossos irmãos do Clube da Madrugada. Uma tâmara para o teu coração. Um cupuaçu para os nossos paladares boêmios. Meu endereço vai abaixo. Gostaria de entreter com vocês um entendimento de beira de cais. Receber jornais de Manaus, escrever para eles, escutar de longe as novidades da mais bela das cidades do Brasil, junto com a Bahia, porque autênticas.
Como na Roma antiga, direi de toga suspensa e num gesto digno: Vale!
Do teu ex-conde

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

QUANDO AS NOITES VOAVAM



VI

deve ser dito, entretanto,
que pajés invisíveis existem por todo universo.
Há espelhos de vários tamanhos
que orientam os que partem para longe,
e trocanos que tocam sozinhos
para marcarem o local das partidas.


Casas que mudam de paisagem,
rios subterrâneos, cachoeiras sem pedra
e gorjeios de pássaros encantados,
confundem, às vezes, o leitor desprevenido
que se interna por estes bosques.
A viagem pelo tempo é longa,
mas o sono é breve.