sábado, 2 de maio de 2015

AGENDÁRIO DE SOMBRAS



AGENDÁRIO DE
SOMBRAS


(sonetos)





Jorge Tufic


PREFÁCIO DO AUTOR

    ¨Agendário de Sombras¨, que agora reaparece um tanto modificado, obteve a aprovação do Conselho Editorial da Universidade Federal do Ceará, tendo merecido fazer parte das Edições UFC no ano 2000. O texto, aqui, como não poderia deixar de ser, sofre a inclemência dos acréscimos, substituições e alterações, a meu ver, necessárias. ¨Retrato de Mãe¨(IV Parte) e Primeiros e Últimos desse volume (V Parte) ficaram de fora, mas não totalmente. Em seu lugar inclui-se, neste livro, uma IV parte de sonetos inéditos. Ficam também para uma outra edição os sonetos de ¨Poesia Reunida¨,¨Poema-coral das abelhas¨, ¨O Sétimo Dia¨, ¨Zéfiro¨ e ¨Dueto para sopro e corda¨, com exceção dos que pertencem à corrente arábica, reunidos num só bloco com mais alguns, compostos posteriormente. A divulgação de meu livro recentemente publicado, ¨Guardanapos pintados com vinho¨, poesia, interfere em minha produção literária como um aviso de que o soneto poderia já ter esgotado a sua longa fase, dos anos 40 do século XX, aos dias de hoje. Ledo engano. Prova disso são os montes da espécie que vou encontrando, a cada dia, nas estantes e gavetas, em disputa com as baratinhas, teimosas em lhes fazer companhia.
    Dedico esta coletânea a todos aqueles que ainda acreditam na evolução desse gênero de poesia, cuja forma fixa, ao contrário de ser um obstáculo, satisfaz como síntese e mistério.
     Nota de esclarecimento: outros sonetos dedicados, mais no âmbito do afeto do que nesse contexto do presente Agendário, serão objeto de um livro à parte, dividido entre o ativo e o passivo de muitas correspondências literárias, ao longo destes últimos 50 anos.                                                                                                        
                                                                                           
                                                                                          JT


AGENDÁRIO DE SOMBRAS

SONETO PARA JORGE TUFIC, POETA FENÍCIO, ALIÁS PASTOR DE OVELHAS

Ouve, poeta, a noite no teu canto
que a lua antiga beija a flor da terra.
Teu rebanho de versos segue o pranto
de um rio dando adeus... tudo decerra
ao teu olhar uma visão de espanto
ou de sonho: agora a cor da serra
tem os matizes que colorem tanto
o olhar do justo, quanto o de quem erra.
Nós, poetas, erramos e é tamanho
o peso de um poema, que em parelhas
descem rios do olhar... eis nosso ganho!
Tremem luzes nos céus - essas centelhas
são teu precioso, teu sutil rebanho.
Nas horas vagas, és pastor de ovelhas
(Luciano Maia)


BARANDANÇAS  ( I )
                   Para Jorge Tufic

Se passo na¨Jesus¨ , vejo-o fechado.
Se chego na ¨Suam¨ , está deserto.
Onde pousar as asas, se essas sombras
se exilaram e o sol raios desfere?
Grande Turco, eu te invejo a caminhada
do levante ao poente, ao som glorioso
das bandurras que inventas para a noite
e se fazem na noite arcos e pontes
onde o dia amanhece e a claridade
volta a reger os ritmos e as falas.
São já três horas orbitando o espanto
de estar nesta cidade áurea e inflamada
onde ninguém me vê nem me conhece
e a tarde é uma asa clara que anoitece.
(Alencar e Silva)

PARTE I

PRÓLOGO

Aqui estou para dar meu testemunho
da sucessão de perdas que me fazem
sentir que a vida é um outro, iluminado:
sempre alguém sonha e faz o que pensamos,
sempre pensamos no que faz sonhar.
A porta era de zinco? Chão de estrelas.
A canção tinha nome ou tinha voz?
Carlos Drummond de Andrade em seu Boitempo
nos conduz ante portas e janelas:
inventários, serestas e relógios
brincam de solidão cantam marias.
Em Pedro Nava as chácaras florescem
nas conversas, nas luas e nos ossos,
fundas lembranças, súbitos remorsos.


I - DO INFANTE AZUL

I

Necessito do rio e da paisagem
que me vira partir quando menino.
Da visão surpreendida ou desse quanto
pode haver em redor do meu destino.
Eram coisas e seres do meu tempo,
partes de mim que a vida, em seu balanço,
foi deixando passar, nuvem sujeita
aos ventos, matéria sujeita ao ranço.
Rubros sóis de verão, colheita breve
de azeitonas e ocasos, também contam.
Soldado entregue ao chumbo dos brinquedos,
ao som, talvez, das águas deste inverno,
quero sentir na pele evanescente
como eu seria agora, antigamente.



II

Penso em vós, jubilosas testemunhas
dessa infância ondulada pelo sono.
Passarinhos azuis e a mira exata
da usura e da vileza por seu dono.
Penso  em vós, correntezas abrigando
um sol de barro líquido: a canoa
junto aos funis que, logo, repentinos,
sugam qualquer gigante pela proa.
Penso no meu lendário de alfazemas,
nas chuvas com seus peixes luminosos,
nas contas de meu pai, nos meus sapatos
a caminho de um circo imaginário.
Tudo se gruda aos ossos deste empenho
de esquecer o que sou e donde venho.


III

Muro de folhas, capinzal, varanda
e um menino a chorar pelo seu trem
pousado na vitrine, exposto ao mundo
e ao assédio dos pobres sem vintém.
Noites de insônia, lágrimas, tormentos
e o trem calado e só, frágil brinquedo
mas tão real em sua postura de aço
que ali crescera tanto e dava medo.
Muitos natais passaram com suas luzes,
milhões de trens rolaram, transformados
no desejo impossível de obtê-los.
Vagão de mim, contudo, ora deslizo
sobre os trilhos do acaso. E ainda me bato
em vão, contra este périplo insensato.






IV

Almas da rua, avulsos caminhantes,
marginados, solenes — quantas frases
ruminaram sem eco: aqui estão eles
diante de mim fantásticos, lilases.
Beleleco, João Anta, Marinheiro
e outros que um dia isentos projetaram
sombras, tímidas sombras fugidias,
como tenham surgido, definharam.
Juncos, cachimbos, vestes remendadas
que restara de vós, semblantes duros,
brandos e bons com as trêfegas crianças.
Que o Museu dos Anônimos conserve
nalgum lugar a imagem que ainda faço
dos náufragos da vida e seu fracasso.


V

Eu disse um grilo ou coisa que, inventada,
foi motivo de súbita alegria;
uma palavra nova, enfim, naquele
deserto de palavras, florescia.
Os zéfiros dos livros e a brancura
das estrelas, depois, foram caindo
sobre as casas e as ruas; andorinhas
já não sabiam de onde estavam vindo.
Ouviram-se martelos que batiam
cravos de sol previstos para a carne
de quem se alara tanto, além das aves
e das cercas antigas e dos campos:
este ser pequenino, hoje encolhido
neste velho teimoso e distraído.






VI

A lua envelhecida ocupa os ares.
Desce inteira das nuvens, e assim plena
larga todas as vestes. Mês de junho
sabe a feitiço e os peixes envenena.
Algo desata a flor dos jasmineiros,
ventos carregam súplicas e brados.
Essa lua, porém, de que me lembro
tem o rosto senil dos afogados.
Jovens que se largaram pelos rios,
braços rijos nas faias, nunca mais
regressaram das margens convulsivas,
dos laços de algum réptil. Que eu recorde
todos dormem sonhados pela aragem,
ecos perdidos numa só voragem.


VII

Sítios da infância, cálidas pitangas
avermelham no cio das cadelas.
Meninos e meninas no barreiro
e a vergonha desaba das janelas.
Bancos de praça rubros amanhecem,
saltam cabaços vivos em memória
de quem chega mas parte; e logo os ventres
a seu tempo confirmam cada estória.
Sobem depois as águas das enchentes,
latifúndios rastejam sob a lama,
montarias a esmo invadem ruas.
As chuvas lavam com rigor tamanho
que após ter o dilúvio sossegado
ficamos limpos, todos, do pecado.






VIII

Cantadores chegavam nos gaiolas
resplandecendo trovas consteladas,
e entre os sabores negros da partida
ardiam no alecrim das madrugadas.
Luas multiplicavam seus cavalos,
dragões comiam flor; e no tormento
das fogueiras solares se expandiam
desdobrando os cordéis do pensamento.
Comparava-se o mundo a qualquer bicho
que anda chutando os pobres de sua terra,
bicho-papão de sonhos e quimeras.
Nordestinadas levas, seringueiros
dos quais resta essa dor, viola serena
que nos consola porque vale a pena.


IX

Meu irmão natimorto aos sete meses
foi plantado ali mesmo no quintal,
onde após sete meses florescera
com seus olhos nutrindo um roseiral.
Que música tocavam nas alturas
flautas de sete cores, quem sabia
nem soubera dizer, mas tinha o corpo
mergulhado em tenuíssima agonia.
Nas cloacas do sexo outros anjinhos
dissolvidos em ácido azulavam
pelas águas cativas, sumidouros.
Meu irmão natimorto aos sete meses
nada entende do mundo nem das feiras.
Só modela raízes e palmeiras.






X

Era um jardim de mágicas a Sena (*)
dos meus tempos nanicos; pergaminho
crepitante nas árvores descia
fermentando palavras com seu vinho.
Formigas tinham asas, eucaliptos
varriam os céus da tarde longos finos,
em cujas pontas altas e solenes
faíscas de verão tocam violinos.
Rios bebidos pela tromba-dágua
retornam com seus peixes; nos telhados
jasmins de fogo e pássaros gorjeiam.
Transfiguradas noites, quando sonho
junto os fragmentos cegos dos meus dias
num montão descartável de elegias.

(*) Sena Madureira - Acre


II - DOS JOVENS GOLIARDOS

I

Que fim levara o sol dourando a espiga
das manhãs argentinas de meus ombros?
Que fim levara a polidez dos seixos
e a magia do riso entre os escombros?
Que fim levara a roupa do menino
seus cadernos suas penas seu tinteiro,
plumas de ganso ao fogo azul e branco,
pepitas de ouro e galo no terreiro?
Que fim levara a esguia namorada
e as chuvas regulares copas verdes,
chão coberto de mangas? Se este nada
era tudo e tão fundo e tão sublime
que nem toda a existência de palavras,
nem a vontade de morrer, exprime.


II

Palcos frios da história, outras cidades
rangem na biografia destas rugas,
nas pelancas noturnas e nos dedos
que ainda mexem com pássaros e fugas.
Jovem solar, pedreiro de açucenas
minha lavra foi pedra, e seu calor
ardia nos penachos da oficina
que nascera de um verso ou de uma flor.
Quantos éramos, jovens, nessa trilha
dos mares e das terras encharcadas
pelo sal corrosivo da partilha?
Lições vincadas pelo nojo sabem
transbordar do meu peito anjos e mágoas;
tantas assim, que as outras  já não cabem.


III

Tomo os primeiros goles deste vinho
que há-de ser o meu sangue e a minha cruz.
Talco das luas sou, pois me condeno
a sonhar bem maior do que esta luz.
Exauridas centelhas e naufrágios
pulsações do universo, alguns edemas
tenho inflado nas horas do absurdo:
silentes brejos, góticos poemas.
Alta noite me acordo subscrito
ao desespero branco, lauda fria,
glosas de mim na súmula de um grito.
Pertenço mais à vida que à penumbra
das estantes lavradas em seu fogo.
Qualquer brinde ao que passa me deslumbra.






IV

Assim me fiz de esponja e mó lavrada.
Pisei fundo os lugares que renego.
Na simpleza das flores cravei reinos
e a vida inteira é o fardo que carrego.
A estrela da manhã desfez-se em poeira
sobre meu rosto de pesar nativo.
Rosas do povo hemoptises rosas
me anoitecem curvado e pensativo.
Orfeus da mata atlântica, Vinícius,
Carlos Drummond, Cecília e quantos mais
foram se incorporando aos meus inícios.
Rimas e versos já não são, porém,
corredores do velho nem do novo.
Este mal não se pega de ninguém.


V

Poetas morriam tísicos. Rameiras
se vendiam na praça da Matriz;
transatlânticos vinham das europas
e eu queria partir, sendo feliz.
Mas partia de costas para o cais
na direção correta de algum bar,
e ali me vejo sob a tenda exausta
de alguém que fui sem nunca me encontrar.
Momentos singulares, num respingo
me trouxeram Bandeira: uma andorinha,
minha vida de à toa, meu domingo.
Poetas morriam tísicos e loucos.
Eram, contudo, belos, verdadeiros.
Devem ser hoje os tímidos e poucos.






III - DO ENTARDECER

I

Babilônio sutil, meu queixo fino
sobrevive às catástrofes; num vaso
posto a secar, meus olhos comparecem
entre os botões da noite milenária.
Sombras do Tigre, mágicas do Eufrates,
algo resta de nós. E disto apenas
tudo volta a crescer, tudo se extingue
feito o barro dos códigos severos.
Quem me decifra além dessas batalhas?
Quem me vê nos coleios da serpente?
Quem me furta do sono e me atropela?
Babilônio sutil, no auge da messe
cozinho para os reis pedras e telhas.
Nas horas vagas sou pastor de ovelhas.


II

Rostos que nunca vi,  jacintos murchos,
cujas sonatas frias me tocaram,
estes rostos não quero: eles são breves
no desfile das pálpebras cerradas.
Penso naqueles outros, familiares
rostos de toda a vida. Cataventos
da rua ainda sem nome, alagadiço
porão da infância, arpejos e trigais,
dai-me a ver novamente ou mesmo em sonho,
estes semblantes nunca repetidos,
graves alguns, mas todos inseridos
na memória dos dias voluntários.
Cemitério, talvez, dessas lembranças,
quantas, em mim, são rosas e crianças.




III

Sou tão frágil, meu bem, que um som, de leve
pode ser-me fatal como o teu beijo:
qualquer música brega, qualquer frase
pode ser-me fatal. E, assim, não deve
a brisa andar tão próxima à tormenta,
como não deve o ritmo da valsa
transformar-se em punhais; a vida é breve
e aquilo que é demais logo arrebenta.
Sou tão frágil, meu bem, que nada pode
separar-me de ti. Teu nome é um sonho
que navega em meu sonho. Tenho pena
de tudo, algo me aflige e me sacode.
Desliga esse Gardel, bota um canário
em vez do som, da voz que me condena.


IV

Ninguém viu quando a foice, o ladotreva
ceifou nosso vizinho, o Guilhermino.
E o que muda na vila ou no sobrado
onde o morto nasceu e foi menino?
Muda a escala dos ventos, muda o cão
de dono, muda o sol, muda o legado
frente ao jardim coberto de palmeiras?
O que muda na casa agora imensa
muda também no trânsito e nas ruas:
fica mais velha a pinga na despensa,
falta alguém, com certeza, nos lugares
freqüentados por ele. Em cada amigo
resta o dobre de um sino, resta a brisa
de uma canção que o mundo aterroriza.






V

Estas vozes de outubro nos ciprestes
farfalham guilhotinas. Rosas pensas
cantam para morrer. Unhas de vento
dobram páginas rubras quando sopram.
Estas vozes de outubro nos ciprestes
anotam meus presságios: quem nos salva
das intrigas, da morte ou da velhice?
Graníticas falésias onde ancora
o musgo, ancora a sombra dos navios.
Estas vozes de outubro nos ciprestes
desenham tempestades, traçam planos
para um barco de sólidos conveses.
Zorba dança e circula no apogeu
das lágrimas; e ganha o que perdeu.


PARTE II

PARA FRANCISCO CARVALHO
                   (¨Exercícios de Utopia¨)

Nestes degraus de múltipla vivência,
nestes subúrbios da palavra andeja,
nestes fôlegos breves e onde esteja
a utopia da queda ou da inocência,
descobre-se tua letra  na aderência
das plumagens, dos ossos ; também seja
no cavo som do espelho que troveja
desvelando os fantasmas da existência.
Fragmentos, não: artérias confirmadas
na construção da ira e do sarcasmo
em nome da poesia e das amadas.
Desliza a pedra sobre tantos vícios!
Gravita o sol em torno desse orgasmo,
Borges encontra o mapa dos hospícios.



A BUSCA

Busco os velhos amigos sobre tela
feita de vozes, têmpera de sonho,
desolados perfis madrugadenses,
companheiros que em versos recomponho.
Sei que estão por aí. Alguns finados,
outros dormindo o sono cor de prata:
rupturas, corrosões, andam por tudo,
separou-nos o tempo que nos mata.
Ruas, Aluísio, Neto, o nosso Guima,
no auge de um brinde ao sol, posam radiantes
numa foto que as traças desanima.
Queira, Senhor, tão breve me aconteça
tornar a vê-los como foram dantes,
se logo até de mim talvez me esqueça.


PASTOR BELMIRO

Pastor Belmiro, agendo-te as lembranças,
duras penas, cuidados e alegrias;
manuseio o teu livro onde Marília
são as cordas gementes de tua lira.
Pastor Belmiro, nuvens e crianças
são tocadas por ti; noites e dias
reluzem no teu pranto; e o verso brilha
muito mais forte quando Amor te inspira.
Pastor Belmiro, os tempos não mudaram:
dentro de nós queixumes e paisagens
simplesmente emudecem com as avenas.
Quando te lemos voltam, se passaram,
nomes, salgueiros, corações e pagens,
rouxinóis, primaveras, cantilenas.






SOM DE BARRO
                   (A orquestra de Mestre Nado, em Garanhuns)

O  barro soa fundo na ocarina.
Tamboritos de barro estudam baques.
Asa branca é de barro: o barro ensina
que o som pode ter múltiplos sotaques.
Consagrados flautins, suaves ataques
de um sopro mais distante se imagina
vindo com a chuva em finos atabaques,
sobre a telha de barro que ilumina.
Ao som da argila a flor salta do jarro.
Nos furos da ocarina perfumada
torna-se puro o cântico bizarro.
Rape-rape atravessa a madrugada.
Flautas são asas desse mesmo barro
que antes de som foi lodo ou quase nada.


AI SEÑORA

Faze de mim, senhora, o que quiseres:
um tapete, uma flor, qualquer lampejo
que te sirva de mágica: o aroma
transformado em teu corpo, sexo e beijo.
Faze de mim, senhora, o que quiseres.
Seta contida, um jorro que alucina
e arde, em teu ventre, músicas e fetos,
um dos quais me interpela e me assassina.
Faze de mim, senhora, este cinzeiro,
teu cigarro, tuas veias, teu batom,
e as fantasias do teu travesseiro.
Faze de mim, senhora, os toques leves
que te fazem dormir — como isto é bom.
Harpas tocando, líquidas e breves.





MAMONAS ASSASSINAS

Cinco pétalas rubras de alegria,
purgativos requebros, fibras rotas
de vegetais cantantes, explodidos
numa rosa de fogo e de alumínio.
Cinco metais gozando a tirania
de um mundo velho e podre: cambalhotas
fazem rir aos meninos surpreendidos
pela farsa, talvez, desse extermínio.
Cinco bufões criados pela mídia,
sereníssima puta destes ares
que tanto nos perturba com seus mitos.
Cinco fedelhos grandes, sem perfídia,
entram nos corredores estelares
onde, agora com Deus, vertem seus gritos.


RELENDO O CZARDAS, DE JONAS DA SILVA

Cavaleiro noturno, os teus sonetos,
troféus de nossa arcádia provinciana,
ainda agora relembram capuletos,
e o bonde, essa festiva caravana,
passa por nós, meninos e coretos,
lança florida, placa suburbana.
Ao longe, o Campeador: vibram tercetos
numa justa feroz à castelhana.
Páginas velhas de um couchê sombrio,
onde, por trás do acanto, brota o rio,
e onde a um castelo amarra-se a canoa.
Manaus antiga, amores e saudades,
perdas, caminhos, bichos, soledades.
Nada disto acabou. Tudo ressoa.






REVÊRIE

Esta valsa me toca. Seus conveses
deslizam sobre as águas do Danúbio;
notas que são telhados, geometrias
do cansaço e das fugas transitórias.
Esta valsa é leveza e cantaria:
botões lilazes, pérolas do riso
arcos e teclas partem dos violinos,
jorros de luz ponteiam serenatas.
E as vides não gangrenam nem se curvam
diante dos potes, velhos granadeiros.
Somente eu, negado à contradança,
me ponho a exercitar para um combate
ao qual me lanço, já, por essa dama
que nunca vi nem sei como se chama.


RECIFE, 1984

Quarto de hotel, Recife. Num domingo
de retalhos de mar na luz que invade
o corredor deserto: um breve pingo
do que sonha, lá fora, a eternidade.
Simples quarto de hotel. Aqui distingo
meu corpo horizontal. Ora, quem há-de
visitar-me no beco! Então me vingo
de estar só com este vento e amo a cidade.
Leio os poetas da terra. Os mais alados
cuja semente estala, por sua lavra,
em tambores, violões, nordestinados.
Marcus Accioly é a voz, o canto grave
em território áspero. E a palavra
tira da pedra o que ela tinha de ave.






SONETO VELHO I

O que somos, fregueses retardados
pelos cascos precários da aventura?
Que palavras nos levam (nós que a dura
sorte de roê-las fez-nos condenados
ao prazer que nos causa a estrofe pura?)
Antes, Senhor, havia nos pecados
desse jogo floral, não sem cuidados,
o bastar-se a si mesmo da procura.
Hoje, Senhor, morremos sem saber.
Bonecos do vazio em que se apruma
dessa inútil vontade, a de não-ser.
A mão que escreve, a mão que o peito agita,
há-de ficar, Senhor, praia de espuma 
sobre o mudo clamor da voz que habita.


SONETO VELHO II

Cada verso é um punhado dessa areia
onde a concha se enterra, mais vazia;
ao longe uma canção, talvez sereia,
banha o corpo estelar na maresia.
Quem se atreve a invocá-la nesse dia,
chamado atroz que as ínsulas permeia?
Flavos cabelos, arcos, nostalgia
fazem do punho trevas e candeia.
Tenho o canto febril, mas decepado.
A lua é um brilho fosco entre os escolhos.
A noite é um sopro duro, enclausurado.
Minha fronte gastei-a nesse intento,
de prender numa concha a luz de uns olhos,
de imitar numa concha a voz do vento.






SONETO À BOCA DA NOITE

Não sei de hora mais fúnebre, nem cabe
perquirir sobre os tons desse calvário.
Desespero do bicho que não sabe
contemplar-se fragílimo e precário.
Carpem góticos sons. Ruge o fadário
das matanças anônimas. Desabe
portanto a noite, aberta em seu lendário,
que este pavor tão gélido se acabe.
Vem de longe a finíssima toada,
esta surda muralha de equinócios,
antônimos da luz, postais do nada.
Edifícios fantasmas construídos
sobre coivaras, pântanos e ócios
de outros lugares mágicos, perdidos.


AUDÁLIO ALVES, 1983

Teu paletó de audálias ressonâncias,
teu cigarro de estrelas fumegante,
assim te vejo, Audálio, no Recife,
naquele 83, ano triunfante,
posto que o golpe se tornara esquife
de seu próprio governo intolerante.
Deste-me um livro: o Canto por enquanto.
Fomos depois à toca dos boêmios
ver a noite passar; o tempo, a noite
que ficaram contigo para encanto
dos amigos, do sonho e da poesia.
Era o nordeste, Audálio, a cova rasa,
o latifúndio e a dor crispando os veios
da tormenta que os ódios extravasa.






ALVENARIA DE SIGNOS

Olhos me olham, cegos, diminutos.
Inscrições relativas, traço duro
que me vê de onde estou; se me interroga
logo parece um turvo cardiograma.
Salpicos da matéria e do calcário
onde a massa peleja contra o pó.
Rumores de ansiedade. Essa energia
se articula, gritante, subtrai-se.
Golpes, levezas, cânticos, linguagens,
gravam signos rebeldes, manuscritos
sobre a história dos muros: desde quando?
Pego do lápis, rápido; mas nada
do que escrevo ele aceita (o tempo voa)
murificado e só, código tenso.


UM SONETO AO SONETO
                   para Virgílio Maia

O sol dentro de um ovo: este milagre
tomou forma de barco. E já navega
desde Petrarca ao meu jeitão de brega,
mas encontra entre nós quem o consagre.
Neste garimpo, salivando o agre
desamor pelos campos, faca cega,
o construtor de andaimes não sossega
nem troca o vinho pelo bom vinagre.
Bocage empluma os dedos com suas glosas,
Jorge de Lima extrai-se do cansaço
que fizera de ti um caixão de rosas.
Mas és, soneto, ainda o velho laço
que embora preso a leis tão rigorosas,
a tudo nos obriga em curto espaço.





RETRATO DE FLORBELA ESPANCA
                    (no centenário de seu nascimento)

Quanta flor no teu gesto, bela Espanca,
Florbela, a mão de lírio sobre o peito,
olhos curvos perdidos olhos negros,
lábios corretos, muros e silêncios
na postura inclinada. O rosto oval
sobre o mármore tenso do pescoço.
Quanta brancura em ti, mas quanta sombra
em torno desse olhar que nos tonteia.
Florbela! Serão pérolas ou lágrimas
estas que descem de tua noite escura,
sobrancelhas de insônia, esgar de louca.
Fazem cem anos plenos que nasceste
para dar-nos tuas mágoas, paixão rara
que um tesouro de súplicas deixara.


MUSEU

Tenho um museu de andanças e rejeitos.
Sapatos velhos secam nas estantes,
roupas desfiam trapos nas cruzetas,
lenços evocam brindes congelados.
Fotos com Greta Garbo, livros rotos
que me deram leituras proveitosas;
arcos e flechas, textos e desenhos
são riquezas do acervo e da penumbra.
Antagônicos anjos também posam
nos beirais dos armários: deusa negra
sobressai do conjunto. Vago espelho
absorve a nudez dos objetos.
Um relógio se adianta e conta as horas.
Bailarina de louça, por que choras?





SONATA PARA CRAVO OU DESCAMINHO

Rolar em vão a pedra do destino
gravitando as encostas desse abismo.
— E por quê não voltar a ser menino,
desprezando a cidade e o terrorismo?
— Você compra revista de humorismo?
— Para quantos que nascem bate o sino?
Maginou tocar tuba de exorcismo
ou sair por aí feito um cretino?
Seja lá como for, ninguém te acode
das milhares de bocas, nem do ranço
nem da miséria que o mundão sacode.
Sensíveis cravos! Noite velha é um trapo
dorminhoco, feroz, mas bicho manso.
A lua é um quarteirão dentro do sapo.


RIMBAUD

Chega um tempo, sem dúvida, perverso,
quando nada contenta ou satisfaz.
Viver à tôa, sem compor um verso?
Disto apenas Rimbaud fora capaz.
Brindo, portanto, ao gênio controverso
pelo pouco que fez, muito que faz.
Rimbaud-menino, trágico, submerso,
barco de luas tontas, satanás.
Chega um tempo — dizia — que escalavra,
sepulta o diamante, tempo mudo,
onde o limo, seqüência da palavra,
torna o mundo sandeu, loquaz e farto.
Onde um gorjeio que me seja tudo?
Lâmina azul, penumbra do meu quarto.






SONETO COLOQUIAL
                   para José Hélder de Souza

Bem, amigo, se a noite faz a curva
e vai de encontro ao sol, na madrugada,
tim tim para nós dois: nada estrangula
o brinde quando o vinho é luminoso.
Brindemos à serpente e à cornucópia
de mais um dia erguido das espumas.
Atravessamos pontes e sargaços,
largas praias, vaginas, continentes
dividiram conosco o texto e a taça.
Agora vamos indo. Tudo amarga
depois dos metros cúbitos sorvidos.
A conta, pô, que lucidez terrível
dança por entre os números; e o mar
que tudo vê, gargalha sem parar.


PARTE III

SE
                   para Alencar e Silva

Se estou triste, se toca um bandolim,
se o mar me lança à praia dos rejeitos,
se brindo à flauta que me sabe o fim,
se orquestro a vida e chuto os seus defeitos,
Se a Deus também recorro e ao botequim,
lá onde Orfeu reanima os seus eleitos,
meu ser penetra a luz que acorda assim
dentro do meu o acorde de outros peitos.
Se me reduzo ao pó de algum momento
que apesar de fugaz, pesa e domina,
se quando penso anulo o pensamento,
se algo me nega, oh roseiral em brasas,
tornai mais ampla a tarde que declina,
dai sopro ao barro que me prende as asas.


PARA THIAGO DE MELLO,
FAMÃO DOS ARES

Menino de papel subindo a rua,
deixas em tudo um sopro uma leveza;
e os papagaios estes são de lua:
a tarde antiga em nossos olhos presa.
Pagem dos ventos longe da incerteza,
mas perto do teu jugo, assim flutua
este brinquedo azul essa beleza
que a refrega dos ares atenua.
Artefatos de nuvens talas finas,
dançam contigo a dança verdadeira
que empresta aos céus couraças repentinas.
São teus versos, amigo, são tuas guias,
frutos da terra copa alvissareira
sob a trança de glórias e agonias.


SONETO PARA CLÁUDIO AGUIAR

Recompuseste, ao vivo, o Caldeirão
na entramada linguagem sertaneja,
no riscado da faca que preteja
dentro do sangue em lava e combustão.
Se enfibra o texto à mítica expansão
de um fato heróico em nome da peleja
pelo direito ao fruto que verdeja
ao som da foice desbravando o chão.
Narrado assim com fé e arte madura,
o teu romance é um trágico mergulho
na verdade que os fatos emoldura.
De que vale, afinal, tanto barulho?
Fica a terra que a nada se mistura,
sucumbe a fera humana em seu orgulho.





OUTRO SONETO PARA FRANCISCO CARVALHO
                   pelo “Raízes da Voz”

Como estás belo neste novo livro.
Definitivamente consumado.
Arte viva de Urano deu-te o fole
que arrebenta a textura do quadrado.
Vejo-te em luta: Cronos é a matéria
dos suportes banais; longe do enfado,
vais tirando ao clamor que nos devora
o sal do verso tenso e constelado.
São raízes da voz a mesa antiga,
a casa velha, o quarto, essa cantiga
das coisas passageiras, dos quintais.
Passarinho veloz, eu te comparo
ao céu de um dia eternamente claro
onde, no entanto, há sombras e punhais.


SONETO PARA LUCIANO MAIA

Peço ao vento que pare e me devolva
todas as peles que de mim sugou.
Peço ao rio que dorme não me leve
para o lado das trevas onde estou.
Peço à luz que tritura os vaga-lumes
seja veloz no tempo que passou:
quero de volta a taça ainda vermelha
desse brinde infeliz que me sagrou.
Peço a torre de um poço onde, menino,
fui ver os cataventos, me proteja
contra as feras lilases do destino.
Seja-me dado, pois, face após face
recompor os meus nadas. Quem navega
necessita de um longe que o traspasse.





AO RELÓGIO
                   para Nelson Saldanha

Os ponteiros deslizam para o sete,
fazem curvas de pássaros feridos,
e através de outros círculos medidos
vai-se o dia que nunca se repete.
Fundir a rosa em toques repetidos,
modelar o silêncio a canivete,
só a este invento singular compete,
sombra cativa de hastes e gemidos.
Presa, no entanto, aos astros feito vara
ou grão de areia fluida, a hora presente
bate sempre depois que se findara.
Pobre relógio. A tudo mais ausente,
se engrena ao tempo que não mostra a cara,
nem mais se conta como antigamente.


SONETO PARA GUARACY RODRIGUES

Tomo um pouco de ti, do teu sertão
mungido passarinho caramujo
dentro do poeta inato desse cujo,
água de aceiro, dobradiça, pão
que madruga nos olhos da coruja;
tomo um pouco de ti, desse teu chão
que desce dos telhados, quando não
volve à manhã que o tempo já não suja.
Para dizer-te apenas que são lavras
de artesão puro as íntimas palavras
que te escondem na estrofe; que te cevam
de amor pelo tantinho que nos faz
ser da terra onde umbigo e sassafrás
costumam reflorir e os anos trevam.





A CIGARRA
                   para Caio Porfírio Carneiro

Nada toca este chão de celulose,
pojado ser bastardo e florescido
pelo adubo dos sons: metamorfose
que lhe dá seiva e lume agradecido.
Se a terra é fria, vale a simbiose
da força deste amor assim contido;
abra-se a mão no traço ou na esclerose,
rebente a flor do cântaro esquecido.
Pergaminho terrestre ao sol da ira,
dana-se o verso em busca de lampejos,
quer-se o peito florir, mas nada inspira.
Jardinando palavras, desde moço
conservo o dom solícito aos arquejos
da mesma flama que nos chega ao osso.


SONETO COM REMENDOS DE CAV PARA
CARLOS AUGUSTO VIANA

Segmentos de tua fala desmoronam
facilidades antes do teu canto.
¨De onde vem esse vento?¨ O olhar amarga
palhas do inútil, sílabas de aurora.
São primaveras grávidas que somam
¨secretos lábios¨ a este novo espanto.
¨Estilhaços de chuva¨, noite à ilharga
do alpendre onde a palavra se demora.
Nessa lavoura, enigmas e retratos
trazem do escuro o cântaro lendário.
O corpo é viga; os arcos, a fratura.
Ó clepsidra de odores mais exatos,
Ó dor tamanha: a casa, o santuário,
tudo apodrece. A letra é que segura.




SONETO INGLÊS PARA ANÍBAL BEÇA

Hoje sei que o meu tempo foi de algemas.
Atado ao mundo, pássaros de areia
se largaram de mim: lestos fonemas
trazem de volta o néctar que incendeia.
Habitante da noite, volta e meia
danço e cavalgo estranhas partituras.
Onde a poesia? Látego e correia
a suíte é rosa, música e nervuras.
A lua imensa bebe, nas alturas
todo o clarão que sobe dos teus dedos.
O mar se expande em conchas e loucuras
solos e flautas contam seus segredos.

Tenda de Omar Khayyam, quem não te habita,
salsa-songo na pauta transfinita?


SONETO PARA MANOEL DE BARROS

Louvas a corrosão que se mistura
aos nadifúndios ocos. Florescentes
cogumelos rastejam. Pedra escura
tem casaco de bichos reluzentes.
Ali mesmo entre locas e vertentes
pisca um olho que vê, sob a textura
desse chão fermentoso e ruídos quentes,
do lodo humano a exata miniatura.
Claridades, sem dúvida poesia
medra nos ermos; pregos e falenas
juntam-se ao podre e ao sol que dá bom-dia.
Além do mais, és singular e brota
de teu caule de larvas este apenas
fabulário que o tempo não derrota.





SONETO À PAULA
                   (menina de olhos verdes)

Pobre menina feita de corais.
Nos ventos de Iracema és relembrada
desde que por desgraça ou quase nada
foste bater no leito dos pedrais.
Musculaturas vivas e abissais,
numa voragem louca e desastrada,
conduziram-te à morte inesperada
cujos ecos são conchas vesperais.
Em cirandas de areia, o reboliço
do mar que te roubara ainda esbraveja
e a tarde plena evoca-te o feitiço.
Faz tanto tempo, mas, que tempo esquece
este verde clarão que ainda peleja
contra as ondas e a pedra em que adormece?


AO ESPELHO

Se um burrículum tenho, que platero
soy yo nesta planura dos sessenta?
Menino sei que fui tirando zero
na porrinha e na manja truculenta.
Institutos, escolas, pau-na-venta,
vieram depois somar-se ao entrevero,
mas foi no mundo aos socos da tormenta
que levei tudo do que menos quero.
Gazel de Lorca, Jó, poste e andarilho,
carregador de nuvens, pára-raios,
quanta mágica fiz sem qualquer brilho.
Fita-me o jovem que me estuda e pasma
ao dar por si tão velho neste ensaio
que tem, por testemunha, outro fantasma.





FUI AO SHOPPING
                   a Paulo de Tarso (Pardal)

Fui ao shopping passear entre vitrines,
olhar no olhar daqueles que passeiam,
sentir na pele o frio, a paz, o cheiro
deste mundo sonhado e obrigatório.
Fui ao shopping com os netos fui ao shopping
tomar chope de espuma e catavento,
fui ver meus cavalinhos de brinquedo
e a solidão das almas que o freqüentam.
Fui ao shopping e vi, naquele espelho
que um rosto ali ficara de outras eras
e outros rostos buscavam-se e morriam.
Se fugi da cidade outra cidade
estava dentro de outra: a mesma gente
de certo modo transcodificada.


SONETO PARA GERALDO REIS

Antes da vila, o tempo, feito aranha,
desenha o bucolismo e a paz profunda.
Antes de ti, que pastoral fecunda
a memória da grama ou da montanha?
Vai penetrar no solo a bota imunda,
vai perder o seu verde a terra estranha
ao sopro de ouro e à trágica barganha
somada ao desperdício em que se afunda.
Sobram, contudo, as nítidas paisagens
que teus olhos despertam, com tua pena
duplamente enraizada nas imagens
que os ares vão flocando: Barbacena,
Ouro Preto, Mariana, estas aragens
onde pastam garupas de açucena.





CONVERSA ÍNTIMA
                   para Afonso Félix de Souza

A Deus agora entrego o pó dos sinos,
a Deus me elevo tardo, mas seguro;
a Deus faço chegar o meu futuro
numa taça quebrada por violinos.
A Deus louvo com todos os meninos
que vi sorrir em meu caminho escuro;
a Deus componho versos, onde, impuro
me ardo em febre e soluços clandestinos.
A Deus que vi nas coisas mais singelas,
a Deus que aprendo em tudo que vigia,
abro as portas, vidraças e janelas.
A Deus eu ouço então — quanta harmonia!—
Ele me fala perto das estrelas,
mas tem a voz no espaço da alegria.


FAZENDA RETIRO
                   para Jaci Bezerra

Falar as coisas do sertão moído,
ver o bagaço limpo de sua carga,
destecer o negrume da espingarda
que mergulha no brejo anoitecido,
deve ser rotineiro ao falecido
proprietário da gleba: aqui se amarga
o lado breu da vida quando larga
fora a messe dos grãos e do vagido,
quando violas, casórios e repentes
vinham com a lua madrugar sementes
ao fogo das paixões intimoratas.
Ano após ano — e como dói senti-los —
ruínas tomaram tudo, enquanto grilos
charnecam sons onde apodrecem latas.




SONETO ZEN
                   para Yacilton Almeida

Que vem a ser a pedra quando bate
ou quando soa dentro de um bambu?
Que vem a ser o mágico gorjeio
quando em si mesmo o pássaro ressoa?
Que vem a ser o verso de uma estrofe
quando a estrofe no verso se condensa?
Que vem a ser o rio quando geme
por um leito de nuvens e cascatas?
Que mãos produzem gestos e desenhos
longe de serem dedos e figuras?
Onde o que nega afirma e se ilumina?
O zen não tira o fogo do silêncio
nem cultiva o barulho; apenas brilha
partindo da costura entre os opostos.


SONETO À YARA TUPYNAMBÁ
                  

Iara ou falsa Iara é iararana.
Mas a Yara que vejo, do barroco
traz-nos Minas; e a cal sobre o reboco
ao casario antigo nos irmana.
Nossa Senhora fica mais humana
entre ramos e pássaros; no oco
dos meninos sofridos, pouco a pouco
vence a noite, moldura em porcelana.
Olhos quadrados, brilhos como insetos,
cataventos de lua, cravo e lírio
perfumando os silêncios descobertos,
Yara são mãos, aroma que se entala.
Nas espirais do vento, esse delírio
por nós se encanta, pelo eterno fala.




SONETO AO MODO PARA
O MESTRE ARIANO SUASSUNA

Todo meu sangue verto nesta folha,
e verto é verso, o nome dessa luta
que me coube por Fado ou por Escolha:
dispor estrelas sobre a pauta enxuta.
Mágoas do Coração que não me olha,
Ausência Azul de um Outro que me escuta,
são restos do Galope que desfolha
o Chão do Mar, o Cardo e a Pedra Bruta.
Sertão de mim, também sou prisioneiro
de Secreto Armorial, talvez Saudade
que se apura no Aboio do Vaqueiro.
O sopro que me alenta vai, com a Idade,
ser irmão do teu Modo, do teu Cheiro
que é Flor de Couro, Prata e Soledade.


EXERCÍCIO PARA TÁRSIO PINHEIRO

Venham todos os cânticos dispersos,
todos os brilhos, sejam donde for;
que estalem deuses, ventos submersos,
dando ao soneto um fôlego maior.
Peremptas rosas, íncubos adversos,
mesmo lembranças bêbadas de amor,
vão empilhando a lenha destes versos
para um breve momento de esplendor.
Agora o fogo oblíquo da resina
queima os restos do dia, a peregrina
Fênix fugaz de tudo quanto passa.
Ah, brevidade, enquanto me consomes,
milhões de seres, números e nomes,
tornam-se poeira, nébula ou fumaça.





SONETO PREPOSITIVO

Igual a ti, cipreste, de mim voa
o corvo azul do tédio cujas garras
levam também meus dias entre farras
e esta melancolia que esboroa.
Anjo infeliz, se ao teu destino amarras
qualquer coisa de mim à hora que soa,
torna mais leve o espinho da coroa
que me cinge ao revés de nobres parras.
Feito Bocage, ao tempo não dei trelas.
Segui Dante até perto das estrelas,
em sucessivas lutas me empenhei.
Do perigo maior fiz um brinquedo,
nem da túnica rubra tive medo,
mas, de ser triste, nunca me livrei.

NATAL, 1999
                  
Natal, Cascudo; o Nelson Patriota
me levando ao Presépio; ali onde o galo
não precisa cantar nesse intervalo
feito de História e solidão remota.
Natal é berço livre que rebrota
das marcas e do sangue: valo a valo
sujiga o tempo e ferra o seu cavalo
para que Dorian Gray lhe pinte a rota.
Nessa caixa de ossadas eu me enredo.
Lembro as ruas solenes, cruzo a praça
na qual de minha sombra tive medo.
Nordestinos do luar, ó meus patrícios!
De uma pedra que fui modelo a taça,
e brindo o mar que sabe dos fenícios.







PRAIA DO FUTURO
                   para meu irmão José

Destes sons tomo o som, tomo o projeto
da nuvem que fecunda ao desabar;
da claridade eu tiro este alfabeto
que me ensina de mar longe do mar.
Mergulho mas sem nunca me afastar
do planalto senil, do meu secreto
empenho de escrever com sombra e ar
no papel branco as ondas de um soneto.
Pincéis do azul, ventos fortes da praia,
dedilham-me sem dó! Surdos cavalos
atropelam moinhos; poeta, cantai-a
a Praia do Futuro. Aqui teus pais
ventam daquele Líbano, a intervalos,
palmeiras de saudades, vendavais ...

II

Que este mar seja o verso e não recorde
o mar, tampouco os versos que lhe atiram:
são peixes de outras águas, luz que morde
a pele do trovão, astros que expiram.
Seja este mar um solitário acorde,
fúrias de mim, projetos que sumiram
trabalhados no caos; sereno Lorde
a fumar onde os cantos não deliram.
Livre dos nautas e descobridores,
este mar é retina, fogo, imagem
de espaços e massacres fundadores.
Tem força e não resiste; luta, anseia
como qualquer molusco. E, logo, é viagem
que se fecha, a luzir, num grão de areia.




SONETO PARA ONESTALDO DE PENNAFORT
                  

Desligo tudo que me liga ao mundo
para ler os teus versos comovidos;
e outro mundo renasce destes idos
sempre mais abissal e mais profundo.
Casos de amor, romances, nostalgia,
são fontes e cenários que imagino
ao saber que o poeta, esse menino,
com qualquer instrumento faz seu dia.
O tempo que levei neste passeio
foi bom demais: livrei-me da tortura
de ver televisão; e por tal meio,
fui levado até perto de um jardim
no qual buscaste a paz em noite escura,
vendo a noite crescer te vendo assim.


PARTE IV

SONETO DO ERAM

A moldura da infância eram pitangas
esquecidas das telas de Van Gogh.
As cercas eram poucas e distantes,
só meninos brincavam na paisagem.
Desses confins recortem-se os brinquedos
feitos a mão das sobras de meu tio,
construtor da cidade, mestre fino
cujas mãos eram bálsamo e verniz.
Manhãs e tardes vinham para o sono,
bichos falavam, bandolins ao longe
tinham letras, figuras, sentimento.
Deste passado há lendas e mistérios.
Guarda cada um de nós o que lhe cabe
saber das coisas que ninguém mais sabe.



SONETO FRATERNO

Meu dia é meu açougue, meu retalho.
Vou do lilás ao rubro a cada hora;
mudanças vêm de dentro e são de fora,
fico sempre maior a cada talho.
Meu dia é natalício ou rebotalho
de outros dias que o tempo não minora;
sáfaros gestos, flama que devora
mas deixa a marca insone do trabalho:
de ser em verso mais do que respira
o corpo que do corpo já se enfada
mesmo que invente cordas, salve a lira.
Irmão do azul que tanto me angustia,
em partes desiguais me torno ao nada,
ao fogo frio que não mata: adia.


OUTRO SONETO PARA ANÍBAL BEÇA

Dos ruídos e vozes que perduram,
lembra-me o sol e a lua, mito e lenda
nas telas do Moacir; e as hortas pensas,
baixadas ocres ladeando os ermos.
Nós tínhamos, Aníbal, fado e noite,
amigos que se foram, boa pinga,
carnavais de avenida, o bar do Cláudio,
rengas a quatro mãos, o peixe frito.
Pólens de antigos pássaros, no instante,
como fios dourados sobre a mesa,
partilhavam conosco o pão de orvalho.
E o fato de se estar como estivemos,
traz de volta o princípio de uma história
que apaga o tempo para ser memória.






SONETO PARA JORGE DE LIMA

As ilhas cantam neste canto novo,
a casa se edifica, a pedra ecoa;
tábuas de cedro adornam caravelas,
nasce o mar entre Oriente e meio-dia.
E foste nomeando estas passagens,
candelabros de névoa, álgidos répteis,
da gravura inicial dando os contornos,
do barro agreste o torso mutilado.
Um nauta assim que busca a própria sorte
no estrito amor que a busca determina,
faz-se de nuvens, âncoras, presságios.
O bloco amargo salta dos abismos.
Eis o poema, o coro ressurgido
de tantas vozes para ser ouvido.


OUTRO SONETO PARA THIAGO DE MELLO

Nossa época, Thiago, está no sempre.
Aumentam bocas, mas o verde cresta;
na quietude do azul faltam bandeiras
da paz que alegre a estrela da manhã.
Nosso tempo, Thiago, amplia os braços
que se estendem nas linhas do papel;
quer seja o tempo de empinar saudades,
quer seja o tempo armado da poesia.
Nossas vozes, Thiago, entram no espaço
das torres de babel como se fossem
peixes de águas secretas, duradouras.
Nosso estatuto, Thiago, são domingos
que iluminam teus versos, plantam minas
para explodir com todas as rotinas.






SONETO POR ACASO


Desce a noite mais fundo que os telhados.
Qualquer música é triste e nada exprime.
Os longes, mais abertos e azulados
trazem, baixinho, a voz que nos oprime.
Talvez notícias de um tamanho crime
que fez nascer o homem destes lados;
talvez a culpa que o sofrer redime,
talvez a solidão de ignotos prados.
Mas logo a brisa varre os campanários,
outras notícias pelo mundo espalha,
o azul torna-se escuro: alguns canários
saltitam nas janelas do edifício.
Novos sons deste som tornam-se palha
da leveza do ser, como exercício.


TAO

Destes arroios soterrados, bela
e renovada tarde em nuvens passa
pelos bosques, também, que por desgraça
só ficaram nos vidros da janela.
Paira nos ares, lívida aquarela,
a brisa; e, antes que tudo se desfaça,
aves de arribação por obra e graça
da leveza estival, somem-se nela.
Como explicar o fulcro da mudança
no tao das horas, traços da fortuna
que avisa dos impactos, da bonança?
Nas linhas retas queda-se, portanto
o círculo da paz; e a força una
junta-se à noite; e a noite é por enquanto.





MANÁOS, FOTOGRAFIA

Manáos é um mito ou foto na parede?
O bonde nestas ruas se demarca
ao brando sol, vitral doutra comarca
onde outro mito, a arquitetura, vê-de:
é estável com os telhados, arcos; lê-de
agora esse passado à luz que encharca
a paz dos transeuntes; bronze e barca
da belle époque, dos trilhos e da rede.
Nas colunas do theatro há gritos ocos,
cantos, além, de pássaros; e o friso
dos vegetais no poente dos barrocos.
A data flui nas águas ferrugentas,
calhas abaixo do que foi preciso.
O azul parece roto; as horas, lentas.


ALGUNS SONETOS DA VERTENTE ÁRABICA
                    ( Alf layla ua layla)

I

Sento e ouço contar, noites a fora
das mil e uma a noite que se adia,
mas antes do final renasce o dia,
sobram motivos para cada aurora.
Sobra fôlego, amor, sobra alegria
sobra o gume da espada. A irmã que adora
ouvir Sheharazade indica a hora,
confunde o sol com a noite por magia.
Brotam gigantes, ilhas, personagens
vai crescendo o filão do imaginário,
não tem limite a força das imagens.
Sheharazade sabe, mas flutua.
Tantas cabeças poupa ao sanguinário
mesmo que a voz lhe canse, e perca a sua.



II

Que deseja provar Sheharazade?
Se ela adia morrer adia a sorte
daquelas que virão sentir a morte
como Sultanas de um Sultão de Sade.
Que deseja provar Sherarazade?
Que o tempo ensina como ensina a arte
de esperar como o tempo se reparte
entre o sonhar e a frágil realidade.
Que deseja provar a história dita
o poder da palavra a inteligência
que interfere nos códigos, transita?
As suras do Corão mediando a trama
urdem surpresas; dão-lhe resistência
ao poder que se instrui, nega-se e ama.

III

Simbá, Simbá, vigia das calçadas,
ouvinte rubro às dores da cobiça,
armei contigo os barcos nesta liça
de marinhar desertos, madrugadas.
Vendedores, mercados, marestradas,
répteis, serpentes, aloés; mortiça
lua de agouro os ânimos atiça
ao vir do sol por noites cochichadas.
Foram sete aventuras sete fios
de ouro lavrando os sítios da coragem,
os poderes do mar sobre os navios.
Ao contá-las, Simbá, quanto barato!
Aos invejosos, moedas, hospedagem:
bebam teu vinho comam do teu prato.







Ó MUNDO

Meus dias saturados de teus dias,
rodei contigo os pólos que rodaste,
fui a lâmpada, a prece, e, no desgaste
de sonhar absurdos, não venci-as
essas pedras, que enquanto me sorrias,
brotavam do caminho; até cansaste
do peso de meu corpo; haste por haste
me enlaçam torpes, secas nostalgias.
És o ar fabulário, a lenda estoica,
minhas roupas, sapatos, cotidiano
feito de três mosaicos  e uma heroica
lua que vem do Oriente solitário.
Eu também venho, barro deste engano
para ser tantos e, portanto, vário.


SONETO A QUATRO MÃOS  (*)

As uvas maturavam sob as vides
nos serralhos famosos da Turquia.
À luxúria dos reis não me convides,
que esse tempo passou, dia após dia.
Mais que a peste, combates e revides,
deixai de lado a rude algaravia!
Dominava o prazer, nefastas lides,
mas falar de outras coisas não havia.
Era chegado o tempo das colheitas,
dos cabelos maduros e romãs,
das sombras novas e das alegrias.
Contidas neste livro de receitas,
despertam como súbitos titãs
bravos eunucos e bacantes frias.

(*) Com Virgílio Maia




OS OLHOS DE MAI (*)

Os olhos! Não te deslumbram os olhos?
Todas as cores guardam no que são.
Eis que evocam perigos, sedução,
perfis estranhos, canforados óleos.
Íris que lembram múltiplos infólios,
olhos azuis, que imóvel solidão!
Olhos negros, etéreos, mansidão
daqueles que rastejam feito abrolhos.
Todos os olhos sondam, ardem, pensam,
muitos encerram cofres de segredo,
perguntam, tiranizam, recompensam.
Queres ver-te no espelho? Vai-te a esmo.
Mas se quiseres ver-me, não tem medo:
olha em meus olhos; busca-me em ti mesmo.

(*) Mai (pseudônimo de Maria Zlady), poetiza
árabe contemporânea, autora desse poema
traduzido, em forma prosaica, por Mansour
Challita.


SONETO PARA MORGIANA, A SERVA

Sem ti, Morgiana, de que vale a senha,
moedas de ouro, alforjes bem recheados
desses maravedis antes roubados
por 40 ladrões de alma ferrenha?
Ali Babá só transportava lenha
sobre burricos velhos, maltratados;
mas abriu-se a caverna – aqueles brados!
e a seus pés a fortuna se despenha.
Sem ti, porém, Morgiana, o que seria
de minha casa assinalada a giz,
dos potes onde a lâmina sorria?
Com certeza, Morgiana, vale pouco
a riqueza sem olhos, e o que fiz
juntado ao que fizeste é um sonho louco.

SONETO AO NARGUILÉ

Pitaram de seu tâmbak minha avó,
meus tios e meus pais; não sei das vezes
que o vi reunir a tribo de imigrantes
numa casa da rua dos Andradas.
Esse cachimbo agora vive só,
longe das alegrias e revezes,
da fumaça e das brasas crepitantes,
da vida com seu tudo e com seus nadas.
Em guarda, com seus ouros e sua torre,
desenhos sobre o vidro transparente,
que fim levara o traste, a pobre herança?
De água e perfume o tempo já não corre.
Mas ainda o vejo, em meio a tanta gente,
fugaz, como um sorriso de criança.


SHERRARAZADE (XVI)

Algo me diz que estive nessa estória
tão dos arcos da velha que imagino
haver sentido o corpo de um menino
a rolar pelos becos da memória.
Estive com os Derwiches? conta a glória
minha mãe, do famoso peregrino
que adentrou nossa casa e tinha um sino
pendente ao manto de sua trajetória.
Fala mais sobre o peixe luminoso
que tinha joias na barriga e duas
perlas no olhar cativo e desdenhoso.
Repita os contos de Sherrarazade,
dá-me outra vez as mil e uma luas
feitas para dormir e ter saudade.






POSSÍVEL FRAGMENTO DE ABUL-ATAHIA

Secos provérbios, distração noturna
à luz de chaves mortas, quanta asneira
move as palavras que não têm peneira
para reter o entulho que repugna.
Que olhos canhestros revistando a furna
da existência banal sequer a poeira
da mais restrita fábula caseira
sabem ver nos pedaços de uma urna?
Textos e sombras ardem neste alpendre
no qual, se dorme o corpo, a alma se vende
e o que foi há-de ser quando será.
Ó provérbios sem nome, quanto adorno,
quanto arabesco nesse vão retorno
do pensamento ao mesmo que virá.


ROMANCE

Se ela me larga eu largo o mundo todo,
dou largas à manhã que já não tenho;
largo o trabalho desço do meu lenho,
faço estrelas partindo do meu lodo.
Se ela me larga, venda-se o rapsodo
para cantar amor e o a que venho
de sentir quando súbito despenho
do penhasco que fui para este modo?
Se ela me larga alargam-se meus ombros,
hei de guerras fazer, espalhar ódio,
ser o Diabo da Rua dos Assombros.
Mas logo soa o telefone; soa
e uma voz infeliz deste episódio,
sabe do que não sei, logo perdoa.

(término da série)




CLUBE DO BODE
                   A João Soares Neto

Para o bode dos sábados, amigo,
retorno hoje às tardes desta rua,
na qual temos por tenda sob a lua
tantos livros e afetos como abrigo.
Sopra a brisa de outubro, o azul antigo
nas crônicas do João se perpetua;
lembra o clube, o repente, a vida crua,
palmas também às damas, sem perigo.
Neste lugar, portanto, Soares Neto,
mandacarus florescem, canta o galo,
verdeja ao longe o milharal discreto.
O caprino (em seu trono) agora berra
vendo servir à mesa, e que regalo!
pedaços de outro bode, irmão da terra.


DOS PESADELOS

Não sei dizer ao menos onde estava,
nem de ter sido aquele que dormia,
nem que os lugares deste sonho havia
na história de algum outro que sonhava.
Sei apenas que o tempo me guiava,
mas o tempo eu não tinha como guia;
sei apenas que tudo o que queria
de minhas mãos tão logo se ausentava.
Ruas, casas, pessoas, brevidades,
sombras, paredes, torvelinho e morte,
nas cartas de um baralho eram cidades.
Que aviso podem dar os pesadelos?
Sonhos bons nunca tive, nem a sorte
de combater os maus antes de havê-los.





SONETO PARA ADELAIDE PETTERS LESSA

Quem me dera, Adelaide, ter as asas
destes anjos que ilustram  ¨Vida e Morte¨,
só para ver-te, ó Chácara dos Salmos,
ó Chácara do Encanto, reflorir-se
no louvor às tuas frases, passo a passo
despertando memórias e uni/versos.
Livro feito das vidas que te deram,
dos jardins que incandescem de teus dedos
e a saga vesperal dos equinócios.
Vou lendo, sim, tuas crônicas bonitas,
teus ensaios de Amor; poemas também,
prensadas rosas, fulcros de silêncio.
Vou lendo enquanto penso no que pensa
de mim pensando, a Cósmica Presença.


IMPROVISO AO 50º DA CARAVANA

Éramos quatro monges na primeira,
cinco poetas depois, numa segunda
Caravana que os longes aprofunda,
tendo as nuvens e o sol por cabeleira.
Tivemos a galáxia por esteira,
bons ares, boa mesa e a mais fecunda
saga de poemas, praça e quebra-bunda
quando para repouso da canseira.
Nestes tercetos louve-se a irmandade
de todos nós, amigos sobretudo,
companheiros por toda a eternidade.
São eles o Alencar, Antísthenes, o Guima,
Farias e este eu que assina tudo
desde que for saudade e tenha rima.






NATAL 2008

Natal me inspira estrelas e reis magos,
Natal revolve os séculos de usura,
Natal me faz pensar nessa loucura
de esperar pelos bens que foram pagos.
Natal de paz ou da canção dos lagos,
Natal de mim que em trevas se procura,
Natal de Deus na fé, quando obscura
ou quando se ilumina em breves tragos.
Natal de amor à mesa que nos prende
aos laços afetivos e ao consolo
de ter alguém que a mesma luz acende.
Natal da iniciação: que a cruz suporte
o corpo deste Rei, sangue e tijolo
do soneto que vence a própria morte.


O DÉCIMO SEGUNDO

Taças finas quebrei neste duelo.
Ocupo as mãos solícitas e paro
a cada girassol que em tempo raro
me faça ver-me um outro, paralelo.
Farfalha a rosa, se desprende o elo,
mas nada me contenta: o brinde claro
e as nódoas de meu dia onde preparo
um outro, o fazem grande, o fazem belo.
Não fui além de um reles assovio,
ecos doídos da quimera infância,
malvas de solidão pranteando o rio.
Taças finas quebrei na epifania.
Guardanapos, ardei na inconsistência,
palavras, vade em busca da poesia.






O ONZE DE SETEMBRO
                   para Jorge Tannuri

Praça Paris. Soneto V. A vida
se corria por conta: brasileira
com a vontade de Deus, nossa bandeira
feita de amor para não ser vencida.
Getúlio volta. O cárcere intimida,
mas se tem carnaval, tem brincadeira;
e o continente ibero é uma ladeira
que leva para o caos numa descida.
Vagueio, assim, de pássaro a vertente,
em bronze me refundo, e das estátuas
faço brinquedos como antigamente.
Livre das bombas que despejam ódio,
percorro o meu Brasil de coisas fátuas,
sem ligar para o trágico episódio.


O SONETO DE DEUS
                   Para Lourdinha Leite Barbosa

Segundo Jayme Ovalle, o passarinho
é o soneto de Deus; ele gorjeia
ao vir do sol, mas tendo lua cheia
pelos ares se emblema, é pergaminho.
Estrofes saltam desse leve arminho,
letras são giros, códigos de areia;
do pássaro e do canto a luz semeia
versos e rimas, bem devagarinho.
Amoroso dos inhos, Jayme Ovalle
tinha por tudo afeto e cortesia:
um santo sujo que por muitos vale.
Ave ou soneto, quando presos voam.
Libertos, não têm jeito de poesia,
quanto menos adornam, menos soam.




O SONETO DE DEUS
                   (outra versão)

Segundo Jayme Ovalle, o passarinho
é o soneto de Deus; ele gorjeia
ao vir do sol, mas vendo a lua cheia
pelos ares se emblema, é pergaminho.
Estrofes saltam desse leve arminho,
letras são giros, códigos de areia;
do pássaro e do canto a luz semeia
versos e rimas, bem devagarinho.
Amoroso dos inhos, Jayme Ovalle
tinha por tudo afeto e cortesia:
um santo sujo que por muitos vale.
Ave e soneto irmanam-se, afinal
nesta curva do azul: tensa magia
pauta o silêncio em notas de cristal.


PALÁCIO NEGRO (ALCÂNTARA-MA)
                   para Luciano Maia

É um palacete e pesa neste chão
que afunda nas ruínas, sempre lerdas;
estas fazem pensar ganhos e perdas,
gemendo as telhas sobre o casarão.
O limo cresta e nada lhe diz não;
paredes e janelas, hoje esquerdas
ao fasto inútil delas restam cerdas
da escova a reluzir no jaquetão.
Pedras são de Lioz . O tempo rouco
nos quer tirar do solo provisório,
mas o sonho é maior do que ser pouco.
Uma foto de Alcântara: o olhar
que ainda nos vê de um ponto obrigatório...
tudo sabe que a culpa foi do mar.




SONETO ALQUÍMICO PARA LUÍS AUGUSTO CASSAS

Para ser ouro ajunta-te aos metais
quer sejam eles de que origem for;
vão-se contigo as letras e esse ardor
que transmuda o silêncio em catedrais.
Vão-se contigo os Nomes ancestrais,
arquétipos do Arquétipo, Senhor
do mercúrio e do enxofre ao contrapor-
se aos aleijões dos ciclos anormais.
A alquimia é uma dança; corpo estático
ela atinge seu grau de plenitude
entre o sétimo céo e o mundo prático.
Do ser que busca e acha o seu destino,
transforma-se a velhice em juventude,
fica o velho por conta do menino.



SONETO DE ALCÂNTARA II
                    (os dedos do anjo)

Um anjo sorridente é ver-se além
da pedra e do barroco no detalhe
sobre ferro lavrado ou nesse entalhe
da madeira senhora de ninguém.
Ao modelar-se ao fogo o aço tem
quimeras e portais; que se trabalhe
a fé neste suplício talhe a talhe
que ao pó se deitam como ao pó se vem.
Condes, barões, ourives, comerciantes,
torres, fachadas, ícones, postigos,
são torvelinhos: dormem nos mirantes.
Anjos indicadores, estes, sim,
têm seus dedos na base dos perigos,
apontam sempre para o mesmo fim.




POMPÉIA
          para Aricy Curvello

As cadeiras pousadas na varanda
flutuam sobre os arcos da preguiça.
Dois pombos testemunham de um terrace
o estupro de uma cabra por cobiça.
Praças, banhos, ruelas, chafarizes,
são vigílias que dormem sob urânio.
O gesto de beber e o corpo em transe
paralisados, negros de fuligem,
tomam conta do mesmo subterrâneo.
O talhe de uma flor em barro fino
lembra o colo de Circe; e um ar de amônia
faz subir destas harpas o som cavo
da cinza, quando as lavas do Vesúvio
se fecharam nos olhos de um menino.


SONETO PLACENTÁRIO

Numa bolha, quem sabe a do planeta,
sobrevivo aos impactos da beleza,
pois a bela e terrível natureza
nos mostra quanto a coisa ficou preta.
Desastres, terremotos e a mureta
de ozônio a desfazer-se; é, com certeza,
forte sinal do lixo e da impureza
talvez pior que a volta de um cometa.
Pasárgadas não há diante do aviso.
Gastamos nosso véu para os flagelos
e, logo, por completo, o nosso juízo.
Raios azuis de estranha iluminura
nos farão recuar, seres tão belos
que só tiveram mãos para a loucura.



COLEÇÃO DE TEXTOS MADRUGADA

1-   Território Noturno (ensaio), de Arimathéa Cavalcanti
2-   Cordelim de Alfarrábios (cordel), de Jorge Tufic
3-   Jorge Tufic: as tendas do caminho (ensaio ), de Alencar e Silva
4-   ZÉfiro com soneata barroca (poesia) ,de Jorge Tufic
5-   O Protesto de Bocage (ensaio), de Jorge Tufic
6-   O Sétimo Dia (poesia), de Jorge Tufic
7-   Jorge Tufic: um peregrino das letras (biografia), de Gaitano Antonaccio
8-   A Amazônia e a quinta lei de Asoka (ensaio), de Jorge Tufic
9-   Crepuscularium (poesia), de Alencar e Silva
10- A glória que fica (depoimento), de José Coelho Maciel
11- Raízes fenícias do coração brasileiro (pesquisa), de Jorge Tufic
12- A Hora do Haicai (haicais), de Yacilton Almeida
13- Agenda l965 (Diário), de Jorge Tufic
14- Curriculum Vitae  Jorge Tufic
15- Guardanapos pintados com vinho (poesia), de Jorge Tufic 
16 - Milton Hatoum: um certo olhar pelo Oriente-Amazônico (tese de mestrado), de Rita Clark
17 - Agendário de Sombras (sonetos), de Jorge Tufic


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