domingo, 29 de setembro de 2013

O RETORNO DA AURA

O RETORNO DA AURA
Luis Augusto Cassas, 41, pertence a uma das mais recentes gerações de poetas maranhenses. Autor de quatro livros de poesia, “A República dos Becos”, “A Paixão segundo Alcântara”, “Rosebud” e “ O Retorno da Aura”, é deste último, no entanto, que iremos nos ocupar.
Para início de conversa, não se trata , aqui, de um livro comum. Elegendo uma temática espiritualista, que passa pela mandala e joga búzios com os mestres derwiches da Idade Média, nem por isso o autor deste livro abdica de sua natural coloquialidade ou senso de humor, atributos estes que dão às suas obras aquele traço característico do que veio para ficar. Deste modo e por extensão,  “O Retorno da Aura” veio para ficar. Ele é parte de um todo, sendo, ao mesmo tempo, a orquestra inteira e a pausa que deixa fluir o mistério da partitura.
Diria, talvez, com um certo  pessimismo, que ele segue, por este exato motivo, a pouco gloriosa trajetória daqueles raros que nascem, respiram momentâneamente o oxigênio do noticiário, mas logo desaparecem das nossas livrarias. Ou seja, deixam de ser reeditados. Submetem-se, paradoxalmente, ao destino obscuro dos incontáveis milheiros de papéis impressos destinados ao paralelo da  gula quantitativa, ao limbo implacável e, quando muito, ao sebo das curiosidades peripatéticas. Esse “confronto” se estabelece, freqüentes vezes, ao depararmos com títulos que já fizeram nossa cabeça, mergulhados agora entre centenas  daqueles outros, alguns deles considerados verdadeiros “Best selleres” (?).
Quando afirmamos, entretanto, que  “O Retorno da Aura” veio para ficar, não queríamos com isso e por mera comodidade, repetir uma simples frase comumente utilizada nas orelhas de livros de poesia, quer pertençam estes à categoria dos singulares, quer venham unicamente com a função de impulsionar, pela quantidade, o aparecimento nunca espontâneo de obras primas realmente notáveis. Luis Augusto Cassas, antecipando-se, todavia, a uma possível arenga sobre temas polêmicos ou modos de enfrentá-los ao nível da linguagem, logo tratou de evitar que os primeiros dominassem os segundos, outorgando à Poesia, em última análise, o encargo sublime de pô-los em ordem sob o rígido esquema do mago e os recursos extremamente hábeis do poeta. Altos e baixos porventura encontrados, não devem, assim, creditar-se ao fato de que a iniciação do filósofo ainda guarda uma certa distância da coloquialidade original do poeta. Essa distância é falsa ou aparente, posto que não deve ter sido fácil a recusa dos termos peculiares ao satori no entramado afetivo e essencial da metáfora, tão peculiar à natureza do poema.
Quem serve a quem, afinal de contas, nesse encontro estelar da verdade com a poesia? Acreditamos, isto sim, que a verdade ou a busca da verdade  é que serve à poesia, como a luz do sol, projetando-se no satélite da Terra, refina e transcende os raios luminosos através do luar. Reprisando o óbvio, a linguagem indireta refina e transcende, da mesma forma, a espessura das vestes prosaicas inerentes à  lógica e ao conhecimento racional. Neste aspecto, Luis Augusto Cassas, poeta dos becos de São Luis, navega com a bússola de Deus e o signo da iluminação poética.

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

CURVAS DO TEMPO


CURVAS DO TEMPO
 

Neste seu livro Curvas do Tempo, como em seu principal caudatário Angústia Numeral, Antísthenes Pinto procura registrar e transmitir as impressões de um mundo  que pode ser visto do futuro, conforme o poema 42, que abre o volume: “extinto cais”, “mortas paragens”. A lua é natimorta. O barco é mortuário. E o grito do mocho “arde nas labaredas do dia”. Em seu longo poema feito por fragmentos, a visão que nos dá é de sucessivos “autos-de-fé”, nos quais até mesmo as  borboletas se aposentam, e o vento leva, de pronto, o seu dono. As coisas, os seres e sobretudo a própria poesia, em busca feroz da metáfora que lhe demonstre o grau de purificação pela destruição a que chegaram – se vestem daquela inquietude que, em certas passagens da obra, ganham uma técnica adequada ao transe de surrealidade (fragmento 66), onde o criador se autocondena a  um suplício maior que o de Prometeu. Isto é, ao mesmo tempo que aves mortas lhe bicam os rins e o coração, ele grita qualquer coisa pro gato que engoliu sua mão. Aí está, sem dúvida, o verdadeiro  suplício do poeta, em debate com o mito da expressão que, no fundo mesmo, se traduz por uma “pressão” e uma “ex-pressão” dentro de um continuum que é o poema.

Por outro lado, uma atmosfera de percepção kafkiana habilita-se a fornecer vários outros aspectos de análise, com prevalência naturalmente da necessidade de um estudo sobre a forma ou a  estrutura do verso, sempre, vale observar, paralela ao jugo dos símbolos de que o poeta  se utiliza para expressar o ilógico e o análogo de seu orbe particular. Um particular, no entanto, vazado nos códigos de todos  os dias e de todas as gentes, embora nele apareçam “baratas verdes”, “voz de incêndio”, “peixe de sol”, “clamor ferrugem”, “negror diurno”, “pânico em repouso”, “lago áspero”, “suor do mundo”, “rio-uzina”, “abelhas louras”, “praça alada”, entre muitos exemplos. O símbolo, como em James Joyce, é o elemento básico da expressão. O signo, aliado ao símbolo, na conceituação de Saussurre, é o que  constitui a essência da  linguagem.

Deste modo, nem sempre a poesia que denominamos moderna é entendida por alguns que, ainda habituados ao verso conceitual, estranham ou simplesmente evitam o esforço de não confundi-la com a prosa. O lirismo e a transcendência da poesia, por serem de natureza conotativa, diferem, assim, daquela, mais afeita ao registro direto dos fatos e acontecimentos do nosso cotidiano. Esse mesmo cotidiano que em Antísthenes Pinto representa uma espécie de aventura como “restauração” de tantas coisas e objetos aparentemente vulgares, mas que, depois de recolhidos na malha sensível do poema, lembram um exercício freqüente do grande Manuel Bandeira. O autor de Belo Belo, dizem Gilda e Antônio Cândido, “repetia no plano da palavra a experiência dos cubistas e surrealistas nas colagens (papiers collés). Erguia-as do entulho a que o gosto médio as havia reduzido para de novo insuflar-lhes o sopro da Poesia, da mesma forma que os pintores retiravam dentre os detritos da cesta de papel os pregos, rolhas, caixas de fósforos vazias, pedaços de barbante e de estopa com que iriam trabalhar a superfície da tela. Num caso como no outro, a emoção artística surgia dessa promoção do objeto que, colocado num contexto novo, irradiava magicamente à sua volta um novo espaço artístico, onde ao fluente encadeamento lógico se substituía uma organização de choque”.

Além desse tratamento de choque, Curvas do Tempo revela a  dureza da vida e do trabalho, na faina de construir e destruir em nome da sobrevivência material. A presença do homem é nula em seus poemas. Mas quem não sente e vê, como as águas refletem e o sopro da brisa alivia, esses vultos esquálidos no ofício de quebrar pedra debaixo da ponte, com “mãos de pedras humanizando pedras”? Mais adiante o poeta lamenta a impossibilidade de captar um poema “se as árvores encardidas na praça mostram ossos em vez de folhas”. Bem humorado, andando um passo à frente de sua época, Curvas do Tempo leva, com certeza, à descoberta de “efeitos supostamente não relacionados”, onde a lucidez, ao contrário da loucura, mostra a realidade exatamente como relutamos por não aceitá-la. O mundo caminha para isso. E a poesia também.

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

CURVAS DO TEMPO

CURVAS DO TEMPO
Há um conto de Vladlen Baknov em que o segredo do presente, quando vamos à sua procura no futuro, transfere-se para de onde partimos e muda de identidade, talvez para que jamais se possa decifrar, mesmo com a incrível ajuda de um tempomóvel, os complicados engenhos da mente em condição de projetar-se além das fronteiras  de meio século. O autor põe na berlinda um poeta que os seres do futuro chamam de Balabachkin, pobre  e anônimo em seu tempo de origem. Assim, quando ele é descoberto, ajudado  e torna-se famoso, o condutor do tempomóvel regressa ao futuro com a finalidade de saber qual teria sido o fim do seu grande contemporâneo. E descobre, assustado, que o Balabachkin conhecido e venerado pelos seus descendentes, nada tinha a ver com aquele outro que, embora tivesse seu nome, a fim de evitar confusão e por modéstia publicava seus versos sob o pseudônimo de U.Pimenzonoff.
Esta  ficção científica nos serve para demonstrar duas coisas: a preocupação de nossos contemporâneos com aquilo que os antigos chamavam de posteridade, e a pouca importância que os poetas, gênios ou simples lavradores do sonho, dão a essa coisa que tanto preocupa os ingênuos construtores de abrigos atômicos e caixas de memórias para o futuro hipotético. Convivendo com poetas desde a minha infância, eu lhes posso dizer que o poeta já nasce e já é. O futuro é o seu presente e o seu presente é, obviamente o seu futuro. Alguns poetas que no passado não foram nem mesmo percebidos, hoje viraram ídolos. Souzândrade é um  exemplo. Todavia, não quer isso dizer que eles, em sua época, deixaram de ser reconhecidos por alguma deficiência relativa ao modo pelo qual escreviam. O status cultural e as preferências de gosto variam no espaço e no tempo. Todos os grandes nomes da poesia universal somente foram reconhecidos depois de mortos. Mas isso não significa que muitos poetas vivos não estejam vivendo a sua glória que um futuro remoto, por circunstâncias alheias á sua vontade, deixe de aceitá-la como válida num plano, digamos, de usos e costumes, onde a palavra, o logos, a comunicação poética a nível exclusivamente do lúdico e do onírico, passem a uma categoria de pesquisa simplesmente de caráter psico-neuro-vegetativo.

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

OURO, INCENSO E MIRRA

 
       OURO, INCENSO E MIRRA
Graças à minha longa convivência, na juventude, com o poeta Alencar e Silva, recordá-lo, hoje, significa também identificar a gênese perfeita do estágio atual de sua poesia numa constante de busca e revelação: idéias e visões apocalípticas que aderem, na maturidade física e espiritual, ao fascínio misterioso da Vida de Cristo, ao milagre da fé e à suprema eficiência da arte como instrumento de catequese.
Autor consagrado de oito volumes do gênero, é, contudo, a partir do livro intitulado “Sob o Sol de Deus” que se processa, a meu ver, o fenômeno de seu tranqüilo apostolado junto às escrituras religiosas que, antes, certamente, eram restritas ao âmbito  apenas de seus textos prediletos. Deve ter sido, portanto, lento e gradativo esse avanço da Luz Verdadeira, enquanto a dúvida e a “perplexidade existencial” recuavam para dar  lugar a um novo compêndio de beleza, sabedoria e verdade. Trata-se agora de “Ouro, Incenso e Mirra”, poesia como os demais, território este onde a pena do mestre tem sabido harmonizar os preceitos doutrinários com o legítimo acorde da expressão poética.
Lírico até o sétimo degrau de sua Obra Poética (“Sob o Sol de Deus”), Alencar e Silva torna-se  épico ao testemunhar a palavra e  os passos do Filho de Nazaré através deste poema composto em (5) cinco segmentos e (50) cincoenta sonetos, todos elaborados com a simplicidade evangélica de quem sabe entrelaçar os fios de uma túnica sagrada. Dá-nos, assim, com a publicação deste livro, uma síntese, inclusive, do homem que sente, na pele e no coração, os martírios e o caos do seu próprio tempo, o que me leva a supor tenha sido este o porto, a rota, a direção ou o sentido que ele perseguia além dos desafios comuns a todo pedestre incomum, além de todos os signos dramáticos que o cercaram na mocidade, além do cálice e do horto invadidos pelo medo.
Releio, enquanto escrevo estas linhas, o seguinte trecho de uma carta sua, com data de 15 de março de 1954: “Sei que sempre tive, na tua pessoa, um observador dos meus passos pelos difíceis caminhos do pensamento, ou um comovido espectador dos meus momentos trágicos, para não dizer tristes...” Mais este outro, agora de um poema autógrafo, s/d: “Porque eu perdi a rota/(ou porque nunca a encontrei)/esta medonha inquietação/começa a desesperar-me:/Onde um porto?/Em que praia, /em que ponta de terra/atirarei meu barco,/para morrer de dormir?/Invejo as conchas - - e a beleza de sua morte.”
Com exceção de “Painéis” (1952), “Lunamarga” (1965), “Território Noturno” (1982), “Sob Vésper” (1986), “Poesia Reunida” (1988), e os dois últimos, da fase mística por excelência, confirmam diante de mim, a segura evolução do poeta. E aqui está, segundo Astrid Cabral, “a constante presença do mar carregado de associações com as grandes distâncias, as terras longínquas, a evasão para o infinito”. Mas diria eu que a  Planície, a Amazônia, esse íntimo lendário subjacente às metáforas perdidas em 300 anos de colonização, sempre foram as preocupações do filósofo, do teórico  ardoroso, do filho da gleba esfíngica, zombeteira e transcendental. Tanto que, embora tenham passado anos sobre estes fatos, ainda lhe retenho o discurso sobre antigos modelos asiáticos que ele expunha aos amigos, na certeza de estar propondo um desenvolvimento menos agressivo para essa parte do setentrião brasileiro. Vivia-se então na década (50) cincoenta, bem longe, por conseguinte, das festividades ecológicas e do “ôba ôba” carnavalesco sobre os estragos, já agora totalmente irreversíveis, contra a Mãe Natureza.
Companheiro inexcedível, poeta genuíno, amigo sincero e bom, todas estas qualidades, no entanto, em nada interferem quando se impõe a necessidade de reiterar, para nós mesmos, a influência e a grandeza deste poeta sobre a geração Madrugada; e, muito antes dela, sobre os jovens da minha geração. É claro que, no momento em que o leio, sobrepõe-se a análise de sua poesia; mas logo a imagem do poeta, do homem inserido no contexto de sua época, do lutador integrando os suplementos literários, ampliam sobremodo a expectativa de um pré-texto afetivo, convertem o modesto projeto do leitor pretencioso numa possível anotação para um livro de memórias.
Seja-me permitido, contudo, admitir que dos Quatro Monges improvisados no auge de uma aventura romântica pelo Sul do País, apenas um deles, Alencar e Silva, por coincidência o menos eloqüente, tivera a coragem de seguir, em verdade, o caminho Daquele que, por sua vez, nunca deixa que a  lâmpada mágica do poeta seque, ou corra o risco de sua chama tremeluzir em plena escuridão.

sábado, 21 de setembro de 2013

O PAPEL DO ESCRITOR CONTEMPORÂNEO DA AMAZÔNIA


O PAPEL DO ESCRITOR CONTEMPORÂNEO DA AMAZÔNIA

Antes e durante esse longo período, nada consta, se não esparsa e raramente, tenham as tribos indígenas da Amazônia se unido e se levantado contra os invasores de seus territórios. Nômades e livres, elas preferem se aliar ao invasor e dão a entender, claramente, que a terra não era de ninguém. Hoje, após tantos conflitos e divisões, quando as sociedades tribais praticamente se reduzem, se extinguem ou se dispersam diante do  avanço das máquinas e da usura pelas jazidas de minério, as diversas Amazônias já formam, como partes de um todo, o esboço de uma complexa mas única nacionalidade. Os pobres se entendem. Pelo menos deveriam entender-se. Senão essa mistura de raças que vai do tribal ao social, do social ao nacional e deste ao continental e universal, não teria sentido histórico. Este seria mais um item que parece merecer a nossa reflexão. Tanto mais quando fomos o cenário monumental para onde acorreram as primeiras levas que contribuíram para a formação do Homem Amazônico. Elas já traziam consigo o fogo e os instrumentos líticos, embora aqui já estivessem, desde muito, as curiosas edificações e canoas transformadoras, depois do terceiro cataclismo; os primeiros animais, peixes, aves, e o grande mistério que nos dá notícia de uma linguagem perdida. A linguagem que devemos perseguir.

Nada disto, senhores escritores da Amazônia, já foi ou estará sendo feito ou decifrado. A esfinge prossegue olhando para nós, donos que somos de um código refratário ao mergulho e ao vôo que lhe habitam os arredores. Ainda não dispomos, sequer, de mínima parte que seja desse belo compêndio de iniciação, em termos de linguagem. A dimensão orgânica da Amazônia, as vísceras e os acordes de sua extensão mítica, continuam à espera de nós, poetas, romancistas, filósofos, antropólogos, estudiosos, contudo envolvidos nos aspectos exteriores da fábula. Falamos em seu tamanho, em sua altura e comprimento, mas esquecemos a sua alma.





Aqui estamos, entretanto, para sabê-la no contexto de sua totalidade. Suas dimensões primárias já parecem delineadas. Falta-nos, assim, penetrar as suas dimensões extraordinárias, as quais também se relacionam com o papel do escritor, como sendo o principal de seus intérpretes.

 

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

O PAPEL DO ESCRITOR CONTEMPORÂNEO DA AMAZÔNIA


O PAPEL DO ESCRITOR CONTEMPORÂNEO DA AMAZÔNIA

Sejam quais forem as respostas a tais perguntas, o certo é que é chegado o momento da união, da confederação e dos encontros periódicos, nos quais, sem dúvida, a simples troca de experiências e objetos culturais entre as várias Amazônias compreendidas pelos geógrafos, historiadores, antropólogos, observadores e estudiosos, possa conduzir ao núcleo germinal de uma única Amazônia, como resultado da plena consciência de suas origens comuns, em dez mil anos de lutas e caldeamentos. Se podemos afirmar, em abono a essa tese, que os antepassados ameríncolas perderam seus domínios e sua identidade em quatro estágios diferentes, mas sucessivos – derrota militar, falta de resistência imunológica, derrota pela fome e pelo escravismo e derrota étnico-cultural, segundo o historiador Antônio Loureiro, a mais terrível de todas, - onde nos colocarmos, hoje, frente aos países ricos que nos infligem derrotas semelhantes na taxa de juros e no endividamento externo, senão como vítimas de um novo e definitivo genocídio? Diante dessa realidade, também se coloca o escritor amazônico.

 Não é, pois, à-toa que tornamos a nos voltar, cada vez mais assustados, para as  rupturas havidas no lento e diferenciado processo da nossa colonização, que nos fizera herdeiros de uma cultura imposta, zelosa em manter aqueles povos nativos subalternos do esquecimento e do massacre, de cuja sabença nada se sabe, mas de cujo destino nos tornamos repetidores. Lemos tudo pelo avesso nas cores desse arco-íris de poeira e solidão. Somos a última abertura de um ciclo a fechar-se. Estamos completamente vencidos pelas diferenças que estabelecemos e cultivamos.

Amazônias diferentes e tão semelhantes, aqui se encontram. Irmanadas sobretudo por aquele “algo extraño y triste” de que nos falara Humboldt. Dez mil anos de solidão – resumidos ou “tensificados” nos cem anos do romance de Gabriel Garcia Marques – instalaram no ar e nos seres a nostalgia de um confronto impossível, mas onde a retórica e o fantástico levam vantagem. Deste modo também, as mitologias do espaço construído passaram o rolo compressor nas fábulas ingênuas, nas “bíblias” e no lendário dos primitivos habitantes destas terras e destes rios. A pólvora, o fio da espada e a racionalidade evangelizadora conseguiram, finalmente, dizimar os guardadores desse universo mágico. Todavia, e porisso mesmo, “algo extraño y triste”, ficou. O próprio Amazonas, na comparação de Santos Chocano, ao vir das Cordilheiras, não é mais que “a silenciosa lágrima de um rio.”

terça-feira, 17 de setembro de 2013

O PAPEL DO ESCRITOR CONTEMPORÂNEO DA AMAZÔNIA


O PAPEL DO ESCRITOR CONTEMPORÂNEO DA AMAZÔNIA

(Discurso do presidente do Conselho Estadual de Cultura do Estado do Amazonas, Sr. Jorge Tufic, pronunciado na abertura do I Encontro Cultural da Amazônia, promovido pela SCA, de 20 a 28 de agosto/88)

Senhores escritores da Amazônia, sejam bemvindos ao Conselho Estadual de Cultura. É com imenso prazer que atendemos ao pedido e às recomendações da Superintendência Cultural do Amazonas, propondo a este Encontro, à guiza de tema, o papel do escritor contemporâneo da Amazônia.

Assim, perguntamos: de que modo poderão as Amazônias conhecer-se para melhor integrar-se em sua própria defesa, enquanto preocupação daqueles que a vislumbram ou intensificam na trama de um romance, na metodologia de um ensaio ou na metáfora de um poema? O que, afinal, se conhece deste fenômeno, numa visão conjunta de sua história, ou de quantos deslumbramentos se tenham convertido na exploração de motivos tirados de sua paisagem, sem excluir o exótico e o pitoresco? Podemos, ainda, considerar exauridos os ciclos econômicos da região, o diálogo de suas grandezas naturais, os episódios de guerra, a ecologia, o problema das populações autóctones e as atmosferas localizadas, com larga tematização e quase nenhum empenho em aprofundar ou renovar os instrumentos da língua e da linguagem?

sábado, 14 de setembro de 2013

O DÉCIMO QUINTO DIA

                        O DÉCIMO QUINTO DIA
 
 Depois de algumas tentativas, no teatro e na simples recolha do lendário para fazer “estrelismo”, cujos autores acabaram falhando por culpa da pressa, exatamente nessa pausa estratégica em nada favorável para editar livros, Getúlio Alho solta o produto de seu trabalho, conquista o prêmio “Cidade de Belo Horizonte”, e resgata a boa prática do trançado indígena em seu plano de romance. Ele já tinha, inclusive, a experiência de “Anhuera”, o inventor do futuro. Aqui também – neste “O Décimo Quinto Dia”-, estão reunidas as marcas vivas de suas inquietações pela posse de elementos capazes de fazer a textura do enredo, sem cair no relatório. Daí a interferência do nheengatu e do tucano, alternando as falhas da História com a vigília cósmica daqueles filhos das águas pretas.
Nos dois incidentes mais graves da expedição, onde quatro índios e um branco são mortos, verifica-se claramente que o que houve entre eles foi falta de comunicação, essa mesma que falta entre o homem e a natureza. Nem por isso, contudo, Balbina deixaria de ser construída: “Um lago de um milhão de metros cúbicos numa área de mais de quinhentos mil hectares...” Expedições anteriores dizimaram as tribos de autóctones e despacharam os garimpeiros para uma outra área. As folhas das árvores ecoam nas folham do livro, e esse trânsito de imagens fertiliza o registro das menores ocorrências, fenômenos, coisa, ação. Súbitos mergulhos no passado de cada personagem ligada à região pelas raízes do umbigo, descortinam, por outro lado, os tremendos conflitos que arrazaram os parintintins. Numa outra viagem de memória, Domingos revive a maloca de seus antepassados, e a breve “cerimônia” de seu casamento: - “Taqui tua mulher. Cuida dela pra que ela te dê muitos filhos!” – A moça pirá-tapuia ficou ao seu lado, humilde, quieta, submissa. Ele se levantou, deixando-a só, e foi pescar. Voltou com um peixe: - “Toma. Prepara pra gente comer.” – Ela recebeu o  peixe, limpou-o e preparou-o, servindo-lhe com beiju e pimenta; só depois que ele acabou de comer é que se serviu e comeu. Estavam casados.”
A constante da obra, no entanto, é o empenho de Batista, o chefe da expedição, em tornar viável o projeto de Balbina. Racionando à maneira dos  primeiros colonos portugueses, parecia-lhe anormal e descoberto de lógica deixar “milhões e milhões de quilômetros quadrados de matas virgens à disposição de meia dúzia de índios que logo morreriam de fome, desprovidos de ferramentas ou capacidade para tirar da terra o mínimo para seu sustento diário”. A lógica formal, o Santo Ofício e o “martelo das feiticeiras”, exorcizavam agora, em nome da Represa, a todos quantos, filhos da gleba primitiva ou netos do trovão, se oporiam de algum modo ao traçado dos altos gabinetes de Brasília. O destino da região já estava decidido. Desse no que desse!
Linguagem simples, informação copiosa, realismo-naturalismo sem retórica, técnica segura, relato vivo, crítico e atual para avaliar-se o tamanho da violência para tão poucos resultados práticos – este é o livro do escritor-arquiteto Getúlio Alho, e onde, ao término de sua leitura, esta pergunta desaba sobre nós como se fosse a própria represa de Balbina: - Valeria a pena fazer isso?
Hoje sabemos que não. Que não valeria.
 
 

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

O DÉCIMO QUINTO DIA

 






               

                      O DÉCIMO QUINTO DIA
Em termos de física moderna, “um objeto em movimento parece contrair-se na direção de seu movimento e se encurta à medida que sua velocidade aumenta, até que, ao alcançar a velocidade da luz, desaparece completamente ( “A Dança  dos Mestres Wu Li”, Gary Zukov, ece editora, pag.141). Em tempos de ficção literária, essa teoria extrapola da realidade da física no continuum espaço/tempo, em sentido contrário: aqui, a narrativa se expande no tempo real e, quando atinge as soluções mais imprevistas, já não cabe no espaço imaginário de  um simples dia cronológico, mas ala-se com a noite para nunca mais terminar. Na “velocidade” de cada situação ou segmento da estória, a duração joyciana trava as  cordas do relógio para conferir o terreno descontínuo da marcha obrigatória. E assim, num só dia, o autor deste livro instaura, na selva amazônica gizada para a construção de uma grande hidrelétrica, a “Odisséia” de uma expedição científica nas matas do Uatumã. A semelhança de “Ulisses”, de James Joyce, seus capítulos obedecem à uma divisão ternária, mais convencional  do que propriamente cabalística , enquanto o texto da obra se comporta tranquilamente numa só divisão quaternária, aí sim, querendo talvez sugerir a alternativa de várias escalas em busca de uma quarta musical, onde todos os sons, ruídos e mistérios da biota tragam porventura a resposta certa para uma única pergunta: - “Valerá a pena fazer tudo isso?” 
Mas enquanto a resposta não vem, os seis integrantes do grupo estão a caminho: um botânico, chefe da expedição, um zoólogo, um geólogo e um engenheiro florestal. No apoio, José, caboco da região, mateiro e cozinheiro, e Domingos, guia. Domingos, o índio, surpreende com as suas andanças, previsões e descobertas durante todo o percurso. Componente mágico da pesquisa em demanda das terras altas ou do platô, sede e comando virtual do gigantesco projeto, divisor de águas das bacias do Uatumã e Urubu, o guia nativo parece vencer o mutismo  e não se cansa de afastar a cortina invisível do som e da sombra, para revelar os perigos da floresta. Implica também com a burrice e o instinto predatório do caboco: “Caboco não tem cara de nada. É mistura” (pag.21). Chega-se a ouvir a bulha do mateiro rompendo, com seu terçado, a galharia fechado e o cipoal teimoso. Atrás dele ou passando à frente embrulhado no jogo das nuvens, ora indulgente com a falta de sutileza do caboco, ora dono da trilha e do mato, Domingos é o pé de onça. Enquanto um pisa, o outro levita. Enquanto um caminha, o outro se desloca. E assim vão, com os homens do instrumento, da ciência e da dúvida reunindo e dando ordens para acampar. De 6 às 9, de 9 às 12, de 12 às 15, de 15 às dezoito horas de um dia qualquer, o décimo quinto de uma expedição parcialmente esmagada pela ameaça do confronto desigual, movido a diesel, com a selva primigênia, algo maior do que todos os papéis da equipe inspira o autor onisciente a pesar os dois lados. Jorra então o saber, ou a sabença que gera o ensaio. Na verdade, ressalvada a técnica e a linguagem próprias do romance, este livro de Getúlio Alho tem desde já assegurado lugar de destaque entre os melhores que falam da Amazônia.


 
 


 

sábado, 7 de setembro de 2013

Violeta Branca e sua época


Violeta Branca e sua época

                           Jorge Tufic

A partir de 1930, portanto, fraquíssimos eram ainda os reflexos da Semana de Arte na literatura amazonense. Contam-se a dedo os nomes que defendiam a Escola moderna. Mas ocorre aí um fato bastante singular na vida literária de Manaus, talvez inexplicável sob o ponto de vista da coerência intelectual: em 1935, a poetisa “modernista” Violeta Branca publica no Rio de Janeiro, seu livro de poemas “Rythimos de Inquieta Alegria” e, dois anos depois, consegue eleger-se membro da academia Amazonense de Letras. O fato assume um tom de saborosa incoerência, de vez que a poetisa, além de modernista, e como tal deslocada no meio acadêmico, fora a segunda mulher brasileira a figurar numa Academia.

 

 

Violeta Branca Menescal de Vasconcelos nasceu em Manaus, no dia 15 de setembro de 1915 e faleceu no Rio de Janeiro, em 7 de outubro de 2000. Ocuparam-se de sua obra, dentre outros, Genesino Braga, Tenório Telles e Marcos Frederico Krüger, tendo merecido , de Almir Diniz, em seu livro Mulheres, a homenagem de um soneto intitulado Canto de Liberdade. Não são poucas, contudo, as homenagens que ela tem recebido no decorrer destes últimos dez anos, destacando-se, para estudo e consulta, Violeta Branca (O poetismo de vanguarda), ensaio e documentário de Carmen Novoa Silva, de quem foi amiga até a data de seu trespasse. Vale a pena reler este livro, no qual, também, comparece uma transcrição da Antologia Poética da Mulher Amazonense, do escritor Danilo Du Silvan, editada em 1984. Embora sem os recursos formais de Cecília Meireles, nem, também, sua profundidade conceitual diante do mundo, Violeta Branca, afinal, segundo Tenório Telles, pertence à primeira fase do modernismo. ¨Seu discurso poético é fluido, despojado de qualquer pretensão acadêmica¨, conclui esse mestre. Feminina, inclusive, não nos parece, em nenhum momento, preocupada com o gênero de sua própria  inquietação lírica ou existencial, enfatizando, sobretudo, a monumentalidade interior que se apressa a fazer de seu canto um jornal de surdinas e confidências, algumas vezes pueris, mas sempre como se estivesse entre árvores e pássaros.

Não me garanto a suposição, mas, segundo um velho amigo e colega do Clube da Madrugada, cruzáramos no Rio de Janeiro e em Manaus, sem que Violeta Branca soubesse qualquer coisa sobre mim ou eu duvidasse da sorte que me envolvera, por segundos apenas, no ar de sua presença profundamente evocativa, suavemente encantadora. Assim é a vida, e o que poderia ter sido pouco bate com as perfumadas lembranças do que realmente, foi.

N do A: palestra proferida na noite de 21 de dezembro de 2012, no auditório da Academia Amazonense de Letras, em comemoração ao centenário de nascimento de Violeta Branca.

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Violeta Branca e sua época




Violeta Branca e sua época 3

                           Jorge Tufic

 Mesmo depois dessa etapa, quando o movimento modernista assume novos aspectos, filtrando a experiência estética libertadora numa tomada de consciência em face da problemática nordestina, nada podemos constatar na literatura amazonense como reflexo positivo daquele movimento artístico e literário. Enquanto isso, Pernambuco já tinha lançado seu famoso “manifesto regionalista” enquadrando em seu contexto “a realidade histórico-cultural nordestino, com seu cenário geográfico, sua dramaticidade, a sua tipologia humana e a sua mitologia popular”. Os resultados concretos desta tomada de posição nós vamos encontrar nas obras de José Américo de Almeida, José Lins do Rego e Graciliano Ramos. No romance, os nossos escritores fincavam baliza entre o ensaio e a prosa de ficção, ressaltando-se, contudo, a importância documental  e sociológica dos temas enfocados, do “inferno verde”, de Alberto Rangel à “A selva” de Ferreira de Castro. Perdidos no cenário amazônico, passávamos aos poucos da noção de inferno verde para a tônica ufanista da terra verde, sem, nem por acaso, lograr-se ultrapassar as fronteiras da “informação copiosa”, da observação “fidedigna”, isto situados genericamente na literatura amazônica, onde, inclusive, repontam as novelas de costumes, as contribuições de fundo ecológico e o lado puramente descritivo, cujo pano de fundo são os célebres “gaiolas”, as lendas regionais e o contraste pitoresco dos enredos amorosos de Hollywood enxertados na paisagem fluvial. Segundo Peregrino Junior, a fase chamada “modernista” da literatura amazônica, está ligada apenas aos nomes de Abguar Bastos, Dalcídio Jurandir, Gastão Cruis, Raul Bopp e Peregrino Junior. “Ao lado dessas” – relata Peregrino Jr. – “muitas figuras secundárias e acessórias, de filiação difícil que nem por isto deixam de ter sua parcela de interesse. Como se sabe, no regionalismo, muita coisa de escassa importância literária tem grande importância sociológica, isto é, pela documentação e pela informação”.

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Violeta Branca e sua época 2

Violeta Branca e sua época
                           Jorge Tufic
 
 
Em 1929 surge “Equador”, também dirigida por Clóvis Barbosa. Esta revista fazia parte da série “Panorama literário do Norte de hoje”, um verdadeiro slogan de renovação cultural. Seu prefácio dá a entender que ela vigora na prática do melhor antropofagismo sulista, e condena a subliteratura que se exercitava em seu nome, em outras regiões do país. E defende um regionalismo comportado na trilha aberta por Mário de Andrade e Cassiano Ricardo. “Uma etiqueta passadista viciou a arte brasileira com estrangeirismos retóricos. Está errado. Tão errado como compreenderem que brasilidade modernista é escrever em cassange o elogio dos lugares-comuns da nossa paisagem”. “Neste brado grandiloquente só reboaram as investidas de seu primeiro e único número”, de conteúdo que nada tinha do que se pregava no introito referido. Seu denodado proprietário e orientador não conseguiu atingir as culminâncias previamente anunciadas, por contingências mesológicas. É preciso notar, porém, que Clóvis Barbosa não descurou da capacidade de nossos homens de letras, ou seja, daqueles que acreditavam nas possibilidades do movimento renovador, visto pelos passadistas como um ciclone no pensamento literário, a exemplo de hordas iconoclastas”. Arrostando toda a sorte de imprevistos e má vontade, ele investiu novamente voltando a publicar, dessa feita, a revista “Redenção”, que alcançou, em parte, sua verdadeira finalidade. É o que se deduz pela verificação dos nomes de realce que dela participaram. Em “Redenção” militaram figuras representativas do ¨modernismo¨ amazonense , a saber: Miriam e Aldo Moraes. Abguar Bastos, Ramayama de Chevalier e Francisco Pereira. Esse órgão “oficial” dos “modernistas”, o mais importante que tiveram, viveu duas fases: a primeira, de 1924 a 1927. A segunda fase vem de 1931, com uma nova reação ao próprio modernismo impregnado de sentimento nacionalista, que se fazia sentir nas metrópoles do país – para desaparecer definitivamente, entre 1934 ou 35. “Ainda podemos mencionar a revista “Vitória Régia”, dirigida por Francisco Benfica, que abrigava, como filhos bastardos, produções de poetas “futuristas”. A revista “Cabocla”  contribuía, por igual, no sentido de propagar o movimento de 1922 no Amazonas, publicando poemas e crônicas que traziam a chancela de Genezino Braga, nem inteiramente divorciado do passadismo nem integrado na psique revolucionária do modernismo. Havia também, o jornal Reação de Moacir Dantas, cuja  pagina literária domingueira editava poesias de Sebastião Norões e Mário Ypiranga Monteiro. “Era desnorteante” – escreve Francisco Batista – “o contraste da página literária do jornal “Reação”: Parnasianismo e modernismo, o que atesta o empirismo telúrico. O próprio dirigente da folha, Araújo Neto, era poeta passadista, regido pelos cânones ditados pela musa de Bilac. Nessa mixórdia parnaso-modernista víamos dois interesses, diametralmente opostos, conciliarem-se pelas injunções espaciais de um suplemento de jornal”. Tudo parece ter ficado nisso.